12 de fevereiro de 2007

O pacto


(Degas)

Há tempos que esperavam o telefonema.

Quando o policial ligou, dando a má notícia, não receberam com o desespero com que haviam imaginado recebê-la. Talvez porque, de alguma forma, tinham preparado o espírito para a fatalidade. Talvez porque já tivessem tomado a decisão, e ela os acalmava.

Ele comprara os remédios há algumas semanas. Entrara uma tarde em casa, o sobretudo molhado da chuva triste que caía em São Paulo, trazendo o pacote com a caixa do produto tarja preta, o qual colocara sobre a mesa da cozinha, para que ela visse e entendesse. Não falaram nada, mas eles se entendiam em silêncio. Um pacto havia sido discutido, em seus detalhes, e fechado, sem que fosse necessária nenhuma conversa constrangedora.

Wlad tinha cinquenta anos, ela, sessenta cinco. Estavam casados ha cinco anos. Angela, aos sessenta, era uma coroa incrivelmente conservada – é claro que com ajuda da última tecnologia em plásticas, silicone e hormônios. Tivera uma carreira de sucesso como advogada de famílias da alta sociedade – ela mesma filha de um velho cacique político que fizera fortuna durante a ditadura e, aos oitenta, morrera de enfarte nos braços de uma garota de programa de vinte e dois anos, num motel em Pinheiros.

O policial informou a morte do filho dela, o jovem deputado estadual Antonio Carlos Maia. Overdose de cocaína. Eles sabiam que ele usava drogas em quantidade atacadista, principalmente nos últimos dois anos, período em que se divorciara, seu partido perdera as eleições locais e estourara o escândalo do aeroporto de Congonhas, no qual ele era um dos principais acusados.

Angela era doentiamente ligada ao filho. Havia mesmo uma história escabrosa, há muito soterrada por toneladas de vergonha e conveniência, sobre uma relação incestuosa, quando ele tinha dezesseis – já um inveterado e corrupto toxicômano - e ela era uma atraente e voluptuosa mulher de trinta e sete anos, que, após a morte do primeiro marido, tomava diariamente porres domésticos, sem coragem de conhecer outros homens.

Ele ficara sabendo da história antes de conhecê-la, pelos empregados. Na época, ele tinha um caso com uma das cozinheiras e ficou extremamente excitado com o que ouvira.

Sua carreira como gigolô – afinal era isso que ele era, embora nunca o tivesse admitido – estava no fim. A cozinheira o alimentava roubando comida da patroa. Só do bom e do melhor, claro - inclusive champagne e uísque. Enfim, ele aproveitou bem uma ou outra oportunidade e seduziu a carente viúva.

Passaram-se alguns meses e casaram-se. Ele envolveu-se de verdade desta vez. Angela era uma pessoa maravilhosa e, sexualmente, não ficava atrás de nenhuma ninfeta. Também não era possessiva – Wlad às vezes saía sozinho com seus amigos e tinha duas namoradinhas com quem se encontrava ocasionalmente. O casal viajou ao exterior diversas vezes e tinha uma vida social intensa nas altas rodas da sociedade paulistana.

No último ano, todavia, as coisas haviam mudado. Ela envelhecera subitamente. Apareceram rugas em lugares novos, ganhara uns quilos a mais, cansava-se ao menor esforço e tinha crises profundas de depressão. Ele dizia também estar deprimido. Ela falava que não queria mais viver. Ele concordava e havia, então, uma espécie de consolo, a paz espiritual que costuma ocorrer aos sofredores quando encontram seus iguais.

Quando ele entrou com o remédio, colocou-o sobre a mesa e lhe dirigiu um olhar significativo e melancólico, ela baixou a cabeça, o rosto tomado por um terror enorme, que durou porém apenas um instante. Logo ergueu o rosto e exibiu um sorriso confuso, mistura de alívio, medo e excitação.


Enfim, deitaram-se na cama, após ingerirem a dose suficiente. Fazia frio e cobriram-se com o edredon gigantesco que cobria a cama gigantesca onde dormiam e, em outros tempos, faziam amor.

Ela virou-se para ele e havia em seus olhos um brilho distante, como se já estivesse morta e, por um momento, voltasse à vida apenas para contemplar seu amado por um breve e intenso segundo.

- Eu te amo, disse Angela, com voz tranquila, como se desse boa noite, e como se, no dia seguinte, fossem comer salada de frutas pela manhã, almoçar fora e ir ao cinema à noite.

- Eu sempre vou te amar, ele respondeu, no mesmo tom. Mas nele não havia tranquilidade, e sim uma espécie de nervosismo ambíguo, alegre e angustiado. Ela, que o encarava intensamente, os olhos agora se fechando com o sono letal que logo iria adormecê-la pra sempre, pareceu perceber algo estranho nas maneiras de Wlad. Como se, nesse derradeiro instante, ela desconfiasse da sinceridade dos sentimentos daquele homem robusto, sorriso largo e voz de trovão, que lhe havia dado tantos momentos de alegria e plenitude.

Ela fechou os olhos, inconsciente. Os olhos dele continuavam abertos, muito abertos. Por fim, fechou-os também, e assim permaneceu por um longo tempo, embora se percebesse, pelo movimento interior das pupilas, que ainda estava acordado. Abriu-os novamente, olhou o teto, ergueu-se e sentou-se na cama. Havia lágrimas em seus olhos.

Cuspiu o remédio, levantou-se e foi ao banheiro.

2 comentarios

reginacarioca disse...

puxa miguel, que coisa mais macabra! nem vou dormir direito...
mãe

José Carlos Lima disse...

Eis aí uma, dentre tantas outras, possibilidades de um blog.

Fico ansioso para, logo logo, os brasileiros termos acessos a internet móvel para, onde estivermos, podermos ter o prazer de nos deliciarmos com textos como este seu

Parabéns,

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