Não extinguiu-se a tortura física no Brasil. Nas delegacias e presídios brasileiros, hoje, pessoas ainda são vítimas de técnicas de interrogatório herdadas dos anos de chumbo, uma realidade que a literatura e o cinema nunca mostraram. Valdirei, filho da Geralda, ex-empregada doméstica da minha mãe, contava-me, no início da década de 90, diversos tipos de tortura aplicados aos bandidos da baixada fluminense. Ele dizia que os bandidos, submetidos a suplícios medievais, não entregavam seus companheiros. Um deles consistia em esquentar uma agulha ao fogo, até que ficasse vermelha e incandescente, e enfiá-la lentamente no canal urinário do pênis.
Valdirei nos contava histórias de bandido como os nordestinos ouviam relatos sobre Lampião. Até que Valdirei também entrou para o crime. Prenderam-no. Converteu-se à religião evangélica. Soltaram-no. Voltou ao crime. Levou tiros, sobreviveu. Enfim morreu, aos vinte e cinco anos, numa chacina em Piabetá, distrito de Magé, área mais pobre e violenta da baixada.
Eu e meu irmão nos tornamos muito amigos de Valdirei, que passava longos períodos em nosso apartamento no Flamengo, zona sul do Rio. Ele ensinou-me a gostar de Bezerra da Silva, a soltar pipa e contou-me as lendas de foras-da-lei famosos. "Se o diabo atira com duas mãos, eu também atiro", teria afirmado Sete Vidas, puxando arma com a mão esquerda, depois de atirar com a direita, enfrentando dezenas de policiais, à beira de um barranco. Atirou loucamente e levou muitos tiros, sem morrer, até que um sargento, aproximando-se por trás, deu-lhe um tiro de escopeta que abriu-lhe no abdômem um buraco do tamanho de uma pizza.
Lembrei das histórias de tortura contadas por Valdirei depois de ler reportagem, hoje, na Folha de Sâo Paulo, sobre um militar que confirma as terríveis torturas infligidas ao então preso político José Genoíno. Hoje deputado federal, Genoíno vinha sendo acusado, há décadas, por um oficial do exército, uma figura naturalmente suspeita, tanto pela posição ocupada na hierarquia militar como por seu posicionamento ideológico atual, de não ter sido torturado, de ter entregue seus companheiros antes mesmo de aplicarem-lhe qualquer castigo.
O assunto, notoriamente, causava enorme aflição ao deputado, que sempre preferiu esquivar-se do tema. Durante os tempos inquisitoriais do mensalão, Genoíno participou do Roda Viva, na TV Cultura. Depois de horas de ataques violentos à sua honra, com entrevistadores notoriamente a serviço de partidos de oposição, Genoino, ao final da sessão, a qual havia enfrentado galhardamente, respondendo às questões mais espinhosas, encontrava-se abatido. Paulo Magnum, apresentador do programa, diz que tem uma última pergunta: e tasca a velha acusação do oficial militar aposentado, de que Genoíno delatara seus companheiros antes de lhe torturarem.
Foi a mesma acusação que fez o senador Agripino Maia, durante sabatina recente aplicada à ministra Dilma Roussef. Trata-se de um truque surrado da direitaça atual, invejosa da biografia heróica dos políticos que arriscaram sua integridade física lutando contra a ditadura militar. Genoíno respondeu, com voz embargada, que ninguém tinha o direito de cobrar por informações ditas sob tortura, lembrou que o citado militar há anos procurava atacar sua reputação, e pareceu mesmo perplexo com a baixeza de Markum em fechar a entrevista dando voz àquela acusação. Foi uma covardia. Pouco depois, Genoíno deu entrevista afirmando que o período mais difícil de sua vida não foram os meses em que foi torturado no Araguai, mas aqueles meses em que esteve exposto à execração pública, durante o escândalo do mensalão, porque se antes queriam derrotá-lo fisicamente, seus inimigos agora queriam levar-lhe a alma. Genoíno sofreu um linchamento midiático sem igual após a prisão de assessor de irmão seu, barnabé infeliz do interior nordestino, com dólares na cueca. Descobriu-se, mais tarde, que se tratava de um bandoleiro local, peixe minúsculo, sem qualquer ligação direta com seu irmão, muito menos com Zé Genoíno, mas o caso foi o golpe final que derrubou Genoíno da presidência do Partido dos Trabalhadores, cargo onde já balançava desde o início do imbróglio do partido com Marcos Valério.
Hoje, um caminheiro, ex-soldado do exército, Jairo Pereira, 58, contou à Folha que presenciou torturas bárbaras contra José Genoíno. Segundo ele, o então jovem comunista recebia choques elétricos, apanhava de pau com a cabeça coberta com gorro (qualquer semelhança com Abu Grhai não é mera coincidência), e passava o tempo acorrentado e algemado, como animal, dentro de um buraco na terra.
Consultado pelo jornal, Genoíno confirmou a história, agregando novos detalhes, informando por exemplo, que, havia um grupo de militares, do qual o caminheiro fazia parte, que não pertenciam ao PIC (Pelotão de Investigações Criminais, responsáveis pelas torturas) nem eram do pessoal da selva, que davam um tratamento mais humano aos prisioneiros, levando-lhes comida e revistas.
O episódio serve para marcar o velho clichê sobre o tempo ser o melhor remédio. A aparição dessa testemunha, de perfil isento, mostra o quão covarde estava sendo o referido oficial, ao querer aplicar ao deputado uma segunda sessão de tortura, ainda pior que a primeira, acusando-o de poltrão e delator. O mais triste é que parte da imprensa ajudou-o a instalar os fios.
*
Pois é. Eu disse a vocês que a Veja me deu uma assinatura grátis. Nas últimas capas, a Veja transformou-se em revista de saúde e beleza. A anterior falava sobre câncer de próstata, a atual sobre mulheres. Espertinha, a revista, lobo se vestindo de cordeiro. Mas o lobo está no conteúdo. Não perco meu tempo lendo matéria nenhuma, mas conferi o índice e fiquei (tolamente) curioso sobre uma sessão intitulada blogosfera. Para quê? Eles reproduzem ali um trecho do blog do Reinaldo Azevedo, e de um comentarista de seu blog. O título é: país dos assassinos impunes. Mas o trecho não fala de Pimenta Neves, homicida confesso que matou fria e calculadamente a sua jovem namorada, a jornalista Sandra Gomide. Não, claro que não. O texto acusa o pai de Eloá, a menina morta recentemente em São Paulo com um tiro na cabeça, por seu ex-namorado. O pai de uma menina que acaba de ser assassinada! E por incompetência notória da polícia de São Paulo. Incompetência tão brutal que nem a mídia corporativa, caninamente serrista, conseguiu esconder. A preocupação em blindar o governador José Serra atinge tal paroxismo de ridículo e desespero, que o pai da vítima, um sujeito já destroçado pela morte brutal de sua filha, agora é perseguido pela mídia por um crime que cometeu em Alagoas, há muitos anos, e sobre o qual a imprensa possui escassa informação. Um crime talvez político, talvez em legítima defesa, não sei. O que me espanta é a despudorada tentativa de desviar a atenção do público de uma colossal incompetência de hoje para um crime antigo. Para mim, o pai da Eloá deveria inclusive ser anistiado pela Justiça brasileira, em paga ao sofrimento de ter sua filha morrido de forma tão estúpida nas mãos de um jovem imbecil. Se o Pimenta Neves nunca foi preso por ter matado uma jovem jornalista, bonita, pura e inteligente porque o pai de Eloá, que acaba de ver sua filha ser morta pela inépcia da polícia serrista, deve sê-lo por matar um delegado?
E tudo isso depois da mídia, Globo à frente, ter dado, por incrível que pareça, um final feliz à tragédia da família Eloá. O confete jogado sobre a doação dos órgãos da vítima pode ter o efeito positivo de estimular outras famílias a seguirem o mesmo exemplo, mas é um caso inédito na tv brasileira e só ocorreu quando a reputação de José Serra se viu sob suspeita.
Os fariseus, vocês lembram, eram uma seita judaica, da época anterior e contemporânea à Cristo, que se caracterizava pelo excessivo (e apenas aparente) rigor no cumprimento às normas escritas. No Velho Testamento, e depois na literatura ocidental, os fariseus foram imortalizados como símbolo da hipocrisia, do individuo que aparenta ética e santidade, não a tendo. Vendo a indignação de Reinaldo Azevedo para com a impunidade do pai de Eloá, não posso deixar de compará-lo aos velhos fariseus de sempre. Os quais, dizem os livros sagrados, tanto sofrimento trouxeram à humanidade, que acabaram condenados, por Deus, à danação eterna.
26 de outubro de 2008
Tempo, o carrasco implacável da mentira
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estes militares torturadores apoiam gabeira,
se você gosta de jair bolsanaro vote gabeira
o pig não perde tempo, até na hora de mostrar os candidatos na mesa de votação procura tirar proveitos, assim Paes foi mostrado sem luz no rosto, não dá pra ver direito se é ele, (vai ver que a Globo não tem holofote), em seguida mostram só o traseiro do Paes,
já o gabeira apareceu com o rostinho bem iluminado e sorridente e acenando para o eleitor carioca na mesa de votação
os torturadores agradecem
A Veja?
Apesar de notícias que deveriam estar estampadas em sua capa, como o caso Elóa que, fosse petista o governo a capa seria "Governo Assassino!"
como a Veja está empenhada em eleger Serra o que, em ocorrrendo, segundo Nassif, Civita será o homem mais forte deste País, pois dentre outros benefícios, o Sistema Veja/Abril de Educação será implantado no País
a Veja tem inventado trambiques para derrubar ministros, criar crises.
a última tramóia foi o "grampo" contra o gilmarzão e demóstenes torres, assunto que, como todos os outros deste nível, a Veja faz questão de encerrar.
imagina só se descobrirem que o gilmarzão se autogrampeou. ou se o demóstenes grampeou o gilmarzão. ou se a Veja grampeou os dois...
uma podridão só
Como sempre, o texto está otimo!
Mas você acabou, sem querer, cometendo uma injustiça histórica, como sempre fazem com os fariseus.
Muitos historiadores afirmam que, na verdade, Jesus era um fariseu (ou, no mínimo, pregava como eles. Pela pura palavra.), então jamais criticaria a sua própria linha de pregação. O que ele criticava, de fato, eram os saduceus, os famosos vendilhões do Templo de Jerusalém.
As críticas aos fariseus foram colocadas posteriormente nos textos bíblicos de maneira a enfraquecer a última linha judáica que tinha ainda alguma força depois da queda de Jerusalém, justamente por privilegiar a palavra do que o Templo.;-)
Caro, Miguel, como sempre você escreveu um ótimo texto, porém, devo alertá-lo que o crime ocorreu em Alagoas e não na Paraíba, erro comum entre os cariocas, qualquer estado do NE é a Paraíba e segundo que provas tens que o delegado era corrupto?
Oi Giancarlo, beleza? Já corrigi o erro quanto ao estado, mas não faça disso um caso de "preconceito" contra nordestino, por favor. Foi um deslize, ponto. Quanto ao delegado corrupto, tens razão, não tenho prova. Escrevi porque tava com raiva mesmo. Mas não foi crime de ciúme, com certeza. Crimes envolvendo policiais quase sempre está ligado a guerrinhas sujas da política e do mundo da propina. Tirei o corrupto. Deixei só o delegado. Se alguém conhecer a realidade das polícias estaduais, não só no nordeste, mas em todo o Brasil, sabe que a coisa tá "afro-americana"... Estou tentando ficar mais esperto, mas sempre passam erros e bobagens. Grande abraço e obrigado pela atenção.
como sempre, seus comentários são excelentes, e ,coincidentemente, é tudo aquilo que gostaria de escrever.
retificando: o rapaz do incidente dos dólares, de triste memória, era assessor da prefeitura de aracati, aqui no ceará, e próximo do deputado guimarães, irmão do genoíno. tive a oportunidade de conhecê-lo e sempre acreditei em sua versão do araguaia.
sobre os fariseus, rato tem razão. algumas das obras de harold bloom, que o amigo, com ceteza, deve conhecer, discorrem sobre a "inversão" histórica efetuada pela igreja ao longo do tempo em relação àquela seita judaica.
A mídia de Sampa é absolutamente canalha.
Até rádio evito ouvir as daqui. Ouço as do Rio, pela net. Mesmo sendo os mesmos grupos empresariais (Globo, Band, etc) dá-me a impressão de que no Rio os jornalistas são um pouco menos vendidos ao Grande Imperador Serra, o César de todos os Césares.
Boa idéia, Miguel! Anistia para todo condenado que tenha um membro da família assassinado. É como se fosse uma bolsa de karma: eu matei uma pessoa, fico no débito; mas se alguém matou minha filha, então eu credito. Poderíamos ter um sistema de pontuação, aonde o crédito varia de acordo com a idade das pessoas assassinadas. Por exemplo, se alguém mata minha filha ainda criança, tenho crédito para matar dois adultos ou 3 idosos! Acho que devemos discutir mais essa idéia revolucionária que pode resolver os problemas do sistema prisional brasileiro.
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