Eis um tema que me interessa há bastante tempo, tanto que até enjoei dele. Entretanto, mesmo que não o procure mais, ele vem até a mim, persistente, doloroso. A literatura, segundo eu mesmo, não passa de um nobilíssimo exercício de vaidade, individualista, solitário e divinamente arrogante, um jogo irresponsável, uma aventura suicida e transcendente, um combate obscuro e amoral contra a morte e o tédio, enquanto a política é um vôo de altruísmo, lucidez e sensibilidade social, um teste de coragem, uma luta quixotesca em prol da humanidade e da civilização. Ambos trazem risco, pois não há certezas na política ou nas teorias literárias, apenas fé, pesquisa e amor. Qual a relação, enfim, entre a política e a literatura?
A ligação reside, primeiramente, em quem faz política e escreve literatura: no homem, no sujeito, no escritor enquanto cidadão e no cidadão enquanto artista. Outro ponto que une os dois campos: o uso da palavra e a tentativa de seduzir o leitor. Tanto o escritor como o político querem convencer o leitor de suas verdades, usando contudo ferramentas distintas. O primeiro visa o senso estético, o segundo, o senso ético. As verdades do primeiro são estéticas, subjetivas, captadas pelos sentidos e materializadas na consciência do leitor.
O político, por sua vez, apela ao senso ético do eleitor, usando argumentos que atinjam seu lado racional, mesmo que atravessando seu inconsciente. Eleitores tendem a votar em candidatos com os quais se identificam. Leitores gostam de autores com os quais sentem alguma afinidade.
Os dois campos realizam-se em esferas absolutamente distintas, absolutamente singulares. A mistura entre as duas mediocriza a arte e debilita a política. É o que ocorre quando se vota em candidatos por conta de sua suposta "habilidade" ou "cultura" literária, ou se projeta luz sobre autores utilizando critérios estranhos à arte. Outro dia, folheei um romance de Tariq Ali, escritor paquistanês radicado em Londres, famoso e sagaz intelectual político. Não gostei, no entanto, da ficção política de Ali. Além de enfadonho, não deixa de ser previsível, mesmo onde o autor tenta ser original.
A questão permanece em mim, incômoda, e sinto alívio ao descobrir autores que conseguem unir os dois campos de forma brilhante, como Dostoievski, com todos os seus livros, principalmente em Irmãos Karamazov e n'Os Demônios, e Kafka, n'O Processo. Recentemente, um autor contemporâneo, Philip Roth, chegou perto, em Complô contra a América, um romance que inicia maravilhosamente, desenvolve-se bem, mas termina com um rotundo clichê, resultado da covardia do escritor em afrontar os tabus norte-americanos.
Ao contrário do que pensa o senso comum, a politização do texto literário ocorre, na maioria das vezes, quando o autor omite o fator político, o que é um fenômeno tipicamente brasileiro, resultado talvez de tantas décadas de ditadura militar. Por isso, às vezes se acusa o texto literário contemporâneo, no Brasil, de ser hermético, chato, pernóstico. Trata-se de uma escolha política. Não por ser "difícil" ou "elitista", por "não saber contar uma história". Escreve-se o que se sente, e não segundo um plano deliberado. A literatura vêm das entranhas e dirige-se às entranhas, e há autores de todos os tipos. A crítica destina-se, em verdade, à hierarquia promovida por mídia e curadores de eventos literários, embora não tenha coragem de assumir-se desta maneira - desvirtuando-se assim num ataque aos autores, que não têm culpa por seu hermetismo ou "chatice".
Minha experiência como blogueiro, por exemplo, mostrou-me que o interesse das pessoas pelo texto político também passa por um crivo estético, e por outro lado, os escritores que tentam interferir na política costumam falhar porque subestimam a exigência linguística do leitor não-literário: clareza, verossimilhança, agilidade verbal, persuasão, lucidez. Uma coisa que sempre me aborrece é valoração de textos ou opiniões por conta de serem emitidas por um "nome famoso". Quer dizer, compreendo o fato, compreendo o valor de uma opinião expressa por uma personalidade consagrada por seu trabalho intelectual. Mas o texto literário, e sobretudo o texto político, valem por si mesmos, têm um brilho próprio e parece-me indigno, por parte de leitor e meios de comunicação, criarem uma hierarquia baseada em nomes, e não no valor substantivo e singular de um texto específico.
20 de outubro de 2008
Política X Literatura: a vaidade do preto velho
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Trocadilho a partir de texto publicado no blog www.desabafopais.blogspot.com
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