Conversando com minha tia, abordei a questão do moralismo na política, e acabei criando uma armadilha para mim mesmo. Disse o seguinte: pode haver um parlamentar corrupto que faz mais pelo povo do que um honesto. Logo que disse isso, senti as pernas presas pela trama dos sofismas morais, esse enredo complexo e enganoso que vem atormentando o homem há alguns milênios. Tentarei explicar-me melhor por aqui, no ambiente tranquilo que somente a escrita proporciona. Em primeiro lugar, completo o raciocínio, mas agora em tom de pergunta. Pode haver um parlamentar corrupto que propõe leis importantes para o desenvolvimento nacional e sempre age em prol do povo, ou seja, que seja um melhor político, em termos gerais, que um outro, absolutamente honesto, mas que não cria nenhuma lei, ou quando o faz, é somente em detrimento do povo e do bem da nação, que beneficia interesses estrangeiros, que, em suma, é um péssimo representante do povo, apesar de sua integridade moral?
A pergunta, naturalmente, comporta algumas contradições, já que a corrupção, em si, seria um mal que prejudica severamente o país e o povo. No entanto, essas contradições, inevitáveis, não lhe tiram uma certa lógica. Mesmo aceitando a sua lógica, isso implicaria em relativismo moral? Pensar assim significa aceitar a corrupção?
Creio que não. Ou pelo menos, não é isso o que eu quero dizer. A honestidade permanece o valor central do homem. Mas o que é a honestidade? É apenas ser fiel a si mesmo? É apenas ser fiel à Constituição? Não haveria uma honestidade astuta, pérfida, hipócrita? Um parlamentar honesto pode reinar numa nação de miseráveis como um funcionário público weberiano perfeito, sem fazer nada para combater os problemas sociais a seu redor e, mesmo assim, sentir-se como um soberano representante da moral e da ética.
É um assunto complicado esse, cheio de armadilhas, mas que, por isso mesmo, eu considero emocionante. Nós, brasileiros, descendentes dos grandes navegadores, temos prazer em desbravar mares perigosos. Meu questionamento é o seguinte: a exigência de que os parlamentares sejam verdadeiros super-homens morais, acima dos vícios que perturbam a psique de todos seus semelhantes, não seria irreal, tola, leviana, irresponsável?
A sociedade contemporânea produziu deuses. Os artistas. Eles podem comer criancinhas, torturar, matar, drogar-se, corromper e ser corrompidos. Temos artistas, como Céline, por exemplo, que apoiou o nazismo. Ao fim da guerra, foi condenado à morte. Depois foi anistiado e hoje é respeitado como um dos maiores escritores do século XX. T.S.Eliot, Ezra Pound, Knut Hamsum, Heidegger, também apoiaram o nazismo. Ninguém os crucifica hoje. Quero dizer, ninguém amarra a qualidade de suas obras à sua corrupção ideológica. Claro, corrupção ideológica é diferente de corrupção moral. É pior. Apoiar um regime fascista, como tantos e tantos intelectuais fizeram, na Itália, inclusive grandes poetas, pode ser considerado bem pior do que desviar dinheiro público.
Aprendemos, contudo, a separar o joio do trigo. Sabemos distinguir a fragilidade da pessoa, exposta a vícios, confusão, fraqueza, e o resultado de seu trabalho. Pode acontecer de um lavrador que tenha, por trinta anos, trabalhado a terra, e abastecido toda uma comunidade com o fruto de suas mãos calejadas, ao fim de sua vida, por um descuido da consciência, cometer um ato reprovável moralmente. Mas o seu trabalho de todos aqueles anos não foi em vão. O trabalho que sai de nossas mãos não mais nos pertence, inclusive porque talvez nem tenha vindo realmente de nós, mas de algo maior que existe dentro de nós.
Então, deixe-me esclarecer as coisas. A corrupção moral é um dos grandes males da sociedade brasileira. Mas talvez haja algo ainda pior: as más intenções travestidas de honestidade. Esses que pretendem vender nosso futuro a preço de banana, muitas vezes podem fazê-lo dentro da lei. Os corruptos, nós os pegamos uma hora ou outra, desbaratamo-lhes os esquemas, prendemos seus integrantes, e desestabilizamos, assim, o mercado do crime. Com sorte e esforço, há a chance de reduzir as taxas anuais de corrupção e o país seguirá em frente, mais experiente e mais forte. A venda de nosso futuro, por outro lado, mesmo feita dentro da lei, pode acarretar séculos de atraso e submissão, e gerar enorme sofrimento para milhões de pessoas.
Tomemos cuidado, pois, com o moralismo. O combate à corrupção não deve, jamais, ofuscar a luta maior, a luta política em grande escala, o verdadeiro motor que move as nações em dois sentidos opostos: um futuro de conquistas tecnológicas e culturais, de um lado, ou um destino de mediocridade e miséria, de outro. Um país, para se desenvolver, deve cultivar a honestidade, mas antes disso, ou para que isso aconteça, deve sobretudo cultivar o amor e o respeito a si mesmo.
Nem sempre a Europa foi o continente moralmente rígido que vemos hoje. As provas que teve de suportar para chegar onde chegou foram duras, excessivamente duras. E não creio que um povo que permita a incineração ou morte violenta de seis milhões de judeus seja assim tão honesto como alguns brasileiros colonizados querem nos fazer pensar. Não creio que um país como os EUA, que patrocinou brutais golpes de Estado em todo o globo terrestre, também seja um grande exemplo de moral e honestidade. Essas injustiças envolveram inacreditáveis somas de dinheiro sujo, com o aval de políticos e do povo. E mesmo, com toda essa imoralidade, eles se desenvolveram, amadureceram, produziram o enorme patrimônio tecnológico que hoje põe os EUA e a Europa na liderança do mundo.
Não é o moralismo vulgar, portanto, que nos salvará. Temos instituições fortes e uma democracia consolidada. Esse é o filtro moral: as instituições (Ministério Público, Judiciário, etc), de um lado, e o voto, de outro. Mas o objetivo deve ser eleger políticos comprometidos com as causas necessárias da nação: o desenvolvimento tecnológico e cultural, e a luta contra a pobreza, cujos efeitos corrompem o espírito e a carne da sociedade.
17 de outubro de 2009
As armadilhas do moralismo
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Olá Miguel, parabéns por mais um belíssimo texto.
Acredito que de fato seja importante nos fazer esse questionamento sobre o que é a moral, a que ela serve e se ela se sobressai diante de outras virtudes, porém escrevendo sobre política e sendo defensor do governo Lula parece de certa forma você adotou o bordão Lula rouba mas faz.
o seu texto me lembrou a discussao que tive com um amigo sobre o governo defender o Sarnei, tentei mostrar para ele o porque da atitude do governo,mas ele manteve sua posiçao contraria ao governo,ele me lembra a fala dos simpatizantes do PSOL carioca.
Grande reflexão.
O povo brasileiro precisa superar o catecismo da mídia conservadora que superlativa os deslizes morais de políticos de esquerda enquanto desconversa sobre os atos nocivos ao interesse nacional patrocinados pela direita.
Na vida real, o buraco é mais embaixo.
Artigo muito bom. Uma rara lucidez parece que lhe desceu da alma. Quanto a moral e ao moralismo, se for necessário quebrar uma estrutura moral para atingir um objetivo nobre, isso é estar coerente com a ética avançada que já é inerente a esse indivíduo. O que pode ser imoral para nós, pode ser moral em uma escala mais evoluída que a nossa. Isso só percebe, com tempo, se não formos moralmente rígidos. Talvez, seguindo a máxima de Kant: "Age de tal modo que a máxima da tua ação se possa tornar princípio de uma legislação universal." Para isso, é necessário que se tenha autonomia em relação aos vínculos que formamos na sociedade.
Acho que um ex-grande político é o Eduardo Suplicy,. Uma pena que apresenta sinais de demência ou de oportunismo barato. Ambas as opções lamentáveis.
Salve seu Rosario.
Deixo uma pergunta que acredito ter ligação com seu texto: É possível limpar fossas sem se sujar de merda?
Salve seu Rosario.
Faço uma pergunta que acredito ter ligação com seu texto: É possível limpar fossas sem se sujar de merda?
"você adotou o bordão Lula rouba mas faz."
Daniel, não foi isso, obviamente, o que eu quis dizer. Ao contrário, o sentido do meu texto é desconstruir esse raciocínio. O governo Lula foi o que mais combateu a corrupção no país, o que mais prendeu funcionários públicos e que exerceu a maior transparência no uso do dinheiro público.
Minha crítica vale para um certo radicalismo moral que atinge, sobretudo, o Legislativo. Não prego nenhum tipo de complacência com a corrupção. Ao contrário, acho que as instituições deveriam ser muito mais severas neste sentido. O que eu tento desconstruir é a própria histeria moralista, principalmente aquela que considera o Brasil o lugar mais corrupto do planeta e o Primeiro Mundo, um paraíso moral. Procuro mostrar que não é bem assim, e que, independente dos problemas de corrupção inerentes à vida política de toda nação, há espaço para a discussão política em alto nível. E tento mostrar que o egoísmo político, muitas vezes, mesmo dentro da lei, causa prejuízos mais duradouros e mais cruéis que o desvio de dinheiro público.
Voltarei a escrever mais sobre esse tema posteriormente.
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