30 de outubro de 2009

O povo armado com sua própria cabeça

Daí que a garota disse que as crianças no Brasil deveriam ter aula de ética. Até aí tudo bem. A bomba veio em seguida. Deveriam, ela disse, chamar a Lucia Hippolito para ministrá-a. Uau! Ulálá! Corta a cena para uma anotação que eu fiz há pouco, tirada do livro de Peter Burke, O que é história cultural.

Estudos recentes sobre o antisemitismo na Idade Média realizados por Ronnie H. e Miri Rubin, concentraram-se nos rumores recorrentes acusando os judeus de violarem a hóstia e de assassinatos rituais de crianças, rumores que foram gradualmente se consolidando em uma narrativa, discurso ou mito cultural. As histórias (...) constituíram um ataque narrativo aos judeus, uma forma de violência simbólica que levou à violência real, a expurgos.

Outra citação pertinente, desta vez de Roger Chartier, em a História cultural entre práticas e representações:

As lutas de representação tem tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.

O que sempre me espanta, porém, é a facilidade com que a classe média assume um discurso incoerente com a sua própria história, algumas vezes contrário a seus próprios interesses. Por exemplo, uma senhora amiga. Ela é udenista de nascença. O Carlos Lacerda morava há um quarteirão de sua casa. No entanto, ela é, acima de tudo, uma mulher. E casou com um comunista, por causa de seu charme, inteligência e carisma. Ficou casada por mais de 30 anos, até ele morrer. No entanto, o lacerdismo continua lá, e agora, com esse revival midiático, voltou com toda força. Ela me disse que a universidade precisa ser paga. Ora, como eu me formaria se tivesse que pagar a universidade? Nem ela, nem nenhuma de suas irmãs talvez tivesse conseguido se formar não fosse a gratuidade. Não importa. Ela está repetindo um discurso ouvido de alguém com muito mais dinheiro que ela, para quem não teria nenhuma importância o fato da universidade pública ser paga ou não, já que seus filhos não estudarão mesmo em universidades públicas. O irônico é que essa pessoa (aquela com mais dinheiro, da qual a senhora repete o discurso), além de formada em universidade pública, é filha de outra formada na universidade pública. Ou seja, não respeita nem a sua própria história. Ganhou dinheiro, adeus passado. Não pensa que outros brasileiros também devem ter a oportunidade de ascensão social que ela teve.

Aí senhora me disse que a violência no Rio começou com Brizola. O Rio é uma cidade com mais de 400 anos. A violência, então, nasceu com o único governante de esquerda em 400 anos de história? É uma acusação leviana, tola, de que Brizola teria feito "aliança" com traficantes, um boato lançado naturalmente pela oposição, mas que até hoje circula pela classe média raivosa. A origem do boato deve-se ao fato de Brizola ter sido o único governador a tentar dar um fim à matança indiscriminada que caracteriza a política de segurança do governo do Rio de Janeiro, desde tempos imemoriais, e procurar um novo relacionamento entre o Estado e as comunidades. Para determinados setores do Rio, a matança é o normal. Quem manda parar a mortandade é "amigo" dos traficantes...

O engraçado é a incoerência, porque a mesma senhora fala que tudo se resume à educação (como se fosse possível combater a miséria e a violência apenas com educação... ou como se a educação se limitasse apenas ao colégio, e não a todo um sistema de mudanças na mídia, na cultura, na política, na economia. O pobre, para se educar, tem que ter dinheiro, para pegar filme no vídeo, comprar livro, ir a shows, etc), e quando pegamos um governante que efetivamente apostou pesado na educação, como Brizola, a pessoa dá voz a esse tipo de boato inconsequente. Pode-se criticar Brizola por ter investido demais em prédios, os chamados brizolões, mas só porque os governantes seguintes não quiseram mantê-los, e eles foram abandonados - e a mídia não os criticou suficientemente por isso. Ou seja, em vez de condenar Moreira Franco, por ter abandonado os projetos de educação de Brizola, condena-se Brizola por conta de boatos caluniosos. Brizola elevou substancialmente o salário dos professores - e essa senhora, que foi professora, confirmou que a renda dos professores de fato melhorou muito na época. Brizola instituiu a merenda completa nas escolas, café da manhã, almoço e lanche. Permitiu o horário integral optativo, pelo qual a criança poderia ficar o dia inteiro no colégio. Enfim, ele concentrou esforços e capital na educação pública. E a senhora em questão, quando fala de Brizola, em vez de lembrar do mais importante, repete um boato leviano, uma calúnia sem pé nem cabeça, de que foi por culpa dele que o tráfico se consolidou nas favelas. A mesma senhora repete que Carlos Lacerda, um dos artífices mais importantes do golpe de 64, foi um "bom administrador". As histórias de violência contra favelas e comunidades, contra bairros inteiros, o ataque sistemático de Lacerda ao povo mais humilde, isso não é lembrado. Foi Lacerda quem inventou a Cidade de Deus, entre outras favelas violentíssimas, criadouros de bandidos, instaladas em áreas isoladas do município.

É a história das narrativas, dos ataques simbólicos. Todo aquele simbolismo trabalhado em décadas pelo Globo está ali no inconsciente da classe média carioca. É só apertar um botãozinho e todos vão às ruas pedir a cabeça do presidente e a volta da ditadura... A semântica golpista continua exatamente a mesma. O discurso ético, a indignação seletiva, a eleição de alguns "iluminados" da mídia como referência política. É muito fácil fazer discurso ético. O difícil é bater perna na rua para pedir voto; correr o chapéu entre empresários; convencer milhares de pessoas a trabalhar de graça para você, como militantes voluntários, sem oferecer nenhuma garantia; enfim, o difícil é ser um político numa democracia ultracompetitiva como a nossa. É muito mais fácil sentar numa sala ar-condicionada, ganhando um polpudo salário, e, em vez de contribuir para aperfeiçoar o respeito pela democracia, explorar o preconceito do povo para vender mais anúncio.

E Lula, pelo jeito, já entendeu direitinho que a oposição a seu governo está principalmente na mídia, assim como acontece em toda a América Latina. É uma guerra de representações, de símbolos, mais do que de idéias, e as novas forças sociais e políticas que emergiram no continente já entenderam essa dinâmica. Já que o conflito é inevitável, por ser inerente à democracia e à divergência entre os grupos sociais envolvidos, é necessário que seja feita às claras, e que ao povo seja permitido participar dessas lutas. Por isso, a internet é tão importante: ela faculta ao povo a possibilidade de participar da construção de sua própria cidadania.

3 comentarios

Montenegro disse...

Cara, o Brizola é indefensável.Faz uma pesquisa sobre o Rio de Janeiro entre 1982 e 1986, ou seja, sobre seu primeiro mandato.Pega lembranças aí sobre a guerra que aconteceu no Dona Marta em 1987, quando foi usado, pela primeira vez, armamento pesado.Era a época da Uzi e do surgimento do AR-15, se lembra?.Não defenda o indefensável.Não no quesito segurança.

Hernan disse...

Agora entendo. Estão querendo colar na Dilma a mesma pecha que colaram em Brizola:

http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/dilma-e-as-palavras-doces-aos-ouvidos-do-demonio/

O que dizer desse malabarismo semântico de R. Azevedo para tentar colocar palavras na boca e pensamentos na cabeça da ministra?

Miguel do Rosário disse...

Montenegro, mas isso não é culpa do Brizola. O responsável por evitar a entrada de armamento pesado no Brasil é a PF, e de qualquer forma, a culpa é dos governos de Israel, EUA, Rússia e Alemanha, que vendem armas indiscrimidamente. O comércio de arma deveria se rigorosamente controlada pela comunidade internacional.

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