26 de dezembro de 2010
Mirisola e o politicamente incorreto
(Mirisola é o primeiro à direita. No meio, temos o Bactéria, sebista-intelectual da Praça Roosevelt)
Essa história do politicamente correto ou incorreto ficou bem confusa. Parece que virou politicamente correto criticar o politicamente correto, mas de uma maneira polida, ou seja, politicamente correta. Os colunistas da Folha estão sempre a criticar o politicamente correto, por exemplo. Fazem-no, porém, como que segurando a xícara de café com o dedo mindinho pra fora. Não os culpo em demasia, eles cantam o que se lhes ordena cantar, em troca de um salário razoável e do afeto dos executivos do departamento de cultura do banco Itaú.
Eu também me irrito com o politicamente correto. Entendo, todavia, que há uma coisa chamada "respeito". Esse é o valor que eu prezo. Por outro lado, há uma outra coisa chamada literatura, que flerta com que há de pior, de mais bisonho e também mais engraçado, no ser humano. Há, por exemplo, a literatura semânticamente escandalosa e herética, mas sintaticamente sofisticada e agradável, de Marcelo Mirisola, romancista que escreve crônicas para o Congresso em Foco.
Segue abaixo a sua última crônica:
A parada gay e a marcha evangélica
“Sempre estive do lado das minorias, até que elas viravam maioria, e me acusavam de estar do outro lado. Sempre assim. Logo eu, o defensor das empregadinhas e das mulatas, fui acusado de racista”
Marcelo Mirisola*
Algumas crônicas publicadas aqui no Congresso em Foco me deram subsídios para escrever Charque, meu novo romance que será publicado pela editora Barcarolla em 2011.
Os mais ardorosos castos e os depravados mais ululantes decerto devem ter na lembrança a aproximação que fiz entre a parada gay e a marcha evangélica. Nem precisaria dizer, mas o que segue é o que eu penso, só que agora em forma de ficção. Virou ficção, virou Charque:
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Um trecho, capítulo 18:
(...) porque perdi a aventura e aquilo que Ednardo, Amelinha & Belchior chamariam de sal da vida. Fui me esvaziando, e isso aos poucos se refletiu na frequência da minha quitinete de marfim, na vida das pessoas que trocaram os paralelepípedos pela purpurina e o sangue derramado por k-suco light sabor uva.
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Uma massa colorida descia a Rua da Consolação, mais de 4 milhões de pessoas, incluindo donas de casa, padres pedófilos e escoteiros, negros e albinos, índios e canibais, mulheres & poodles & focas amestradas e – pasme! – bichas!
Todos eles escorrendo feito uma geléia colorida desde a Brigadeiro Luis Antonio até chegar na Igreja da Consolação, bem na frente da minha quitinete. Segundo estimativas da PM, eram 4 milhões de pessoas devidamente vigiadas por 2 mil homens, sendo que – segundo estimativas do organizadores da parada gay – 10% desse efetivo era composto de enrustidos que trocariam a farda por micro-tubinhos e alargariam as estimativas da PM e os seus respectivos esfíncteres na parada do próximo ano. Eis o quadro.
Porque tinha de tudo, para todos os gostos e modulações, inclusive uma espécie em extinção, a bicha louca de tempos idos. Nisso, uma melindrosa irrompeu no terraço da quitinete de um passado distante e improvável, metade desse ectoplasma era igualzinho ao Luis Fernando, meu primo, vindo diretamente de 1980, e a outra metade Salomé.
Luis Fernando, mais conhecido como Cu de Veludo, provavelmente havia se transformado numa bicha louca e velha. Porém somente 1/4 dessa metade Salomé e o outro quarto incorporaram na quitinete em forma de cu de veludo (versão anos oitenta). Os outros 2/4 do fantasma escorriam lá embaixo, junto à realidade do aqui e agora da massa colorida.
O viadinho sofreu muito no colégio, depois de todo esse tempo, ele, já um tiozinho chegado nos 40, devia – pensei – estar lá na parada junto às serpentes albinas e transgênicas, decerto engatado na trolha de algum crioulo, e se dando bem – para os parâmetros dele, sim, mesmo fantasma, muitíssimo bem.
Impressionante a roda viva, e a força dos trocadilhos. Vejam só. Apesar de tudo, e depois de todos esses anos, Luis Fernando finalmente poderia dar o cu que – segundo minhas estimativas – já não era mais aquele veludo dos anos oitenta, sossegado.
Quando o 1/4 Salomé interrompe meus pensamentos e assopra na minha nuca: “quem é enrabado por último é enrabado melhor”.
Ora, o que a melindrosa queria dizer com isso? A geléia colorida se aproximava da Igreja da Consolação; que papo era aquele? Pensei em chamar o gen. Custer ou até o coronel Erasmo Dias, tanto fazia, “alguém tem que tomar uma providência” – ouvia o velho Pascoal, meu avô que há dez anos sucumbira a um câncer de próstata pedir “providências!, providências!”. Enquanto isso, os sioux avançavam... Tínhamos que proteger o Forte Apache! A retaguarda! Cadê o Vigilante Rodoviário? A resposta veio em forma de Ronald Reagan dançando mambo com uma penca de bananas sobre a cabeça. Até você, Reagan? Maldito íncubo traidor!; onde estava o Rin Tin Tin? Amaral Neto, aonde? Só me restava pedir o auxilio da Sétima Cavalaria: os sioux do Village People invadiriam nosso forte apache, cadê você John Wayne?
E a família, a tradição e a propriedade?
– Olha o John Wayne lá, querido.
– Onde?
– Ali – apontou Salomé: – beijando o Batman na boca.
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Fernandinho Cu de Veludo, lindinho, lindinho perdido nos 80s. Também conhecido como Boy George de Pirituba. No intervalo das aulas, lembro, eu era o único cara que conversava com ele na lanchonete. Os animais que estudavam comigo até me tiravam de fanchona. Só porque eu ia conversar com o cara. Pela memória de Jece Valadão, ela era meu primo! Ou prima, sei lá. Sempre estive do lado das minorias, até que elas viravam maioria, e me acusavam de estar do outro lado. Sempre assim. Logo eu, o defensor das empregadinhas e das mulatas, fui acusado de racista. Logo eu, que sempre respeitei o rabo de veludo do Luis Fernando, me acusaram de homofóbico; pensava nisso tudo vendo aquela multidão de 4 milhões de pessoas em ação (quer dizer: mais ou menos 2 milhões em ação, na ativa, e a outra metade na passiva, incluindo, não necessariamente nessa ordem, os padres e os poodles); pra frente Brasil, salve a seleção e salvem os cercadinhos: tudo sob controle e organizado; e eu lá, do alto da quitinete de marfim, me sentindo ultrapassado porque não era viado nem era o negro que enrabava o ex-cu de veludo do Luis Fernando, indagava de mim para mim mesmo: de que merda me serviu o livre arbítrio? E se eu não quiser ser viado?
– Quem tem livre arbítrio é urubu que nasce branco – diria o Furio Lonza (mas essa é outra história...).
Enfim, não sei como, mas praticamente esmagado pelas lembranças e assombrações dos anos oitenta, e quase surdo com o barulho do bate-estaca dos carros de som e da multidão de viados que iria se dispersar na frente da Igreja da Consolação, eu ainda consegui associar o livre arbítrio do urubu do Furio com as palavras de Bakunin la desordre c’est l’ordre moins le pouvoir *; e, a partir daí, fiz umas contas modestas e cheguei à seguinte conclusão:
Um por cento dessa viadada que “enlouquecia” na frente da Igreja da Consolação seria mais do que o suficiente para fazer uma tempestade em Brasília. Imaginei 30 mil drag queens realizando a última etapa da arquitetura de Niemeyer, varrendo aquela merda do mapa.
* A desordem é a ordem, menos o poder
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Um dia antes, no Campo de Marte, outros 3 ou 4 milhões – segundo estimativas da PM – de neo-evangélicos (e enrustidos) em transe se reuniriam na Marcha para Jesus. Ou seja, outra multidão, igualmente organizada e pacífica, atrás de uma mentira brega contada aos guinchos e latidos. O diabo, nos 00, não era mais aquele que trazia o épico e o deserto consigo, conhecem essa história?
Numa sessão de exorcismo, no momento em que o Rituale Romanum previa a interrogação do demônio à pergunta sobre qual era seu nome, o até então “indigitado” afirmou chamar-se Sahaar e provir do deserto. O exorcista o mandou de volta para o lugar de onde veio. Ao que o demônio retrucou prontamente: “Eu carrego o deserto”. Além da retórica, sentiram a responsabilidade e a contundência poética dessa resposta: “Eu carrego o deserto”?
Voltando. Do alto da minha quitinete de marfim, cheguei a outra conclusão, um tanto óbvia. O nome do demônio – cazzo! – sempre foi legião. São exércitos. Não só de pastores. Uma legião de sertanejos, de Ivetes para jogar as mãozinhas para o alto e rebater água benta com axé e Faustão em domingos enfadonhos e eternos. Num dia, o pé quebrado está lá na parada dos viados, no outro na parada dos neo-evangélicos. Se antes ele carregava o deserto, hoje carrega o equipamento de som da banda Calypso. Brega, chapeludo, sertanejo ou disfarçado de drag queen.
E o pior de tudo, disciplinado. Eu pensava: 4 milhões de viados + 4 milhões de neo-evangélicos (segundo estimativas da PM...) = Nenhum cadáver. Nenhuma agência de banco depredada. Como é que pode?
O que me incomodava – nada mudou, as coisas somente iriam piorar – era a retórica infantil. De um lado, o tatibitate teológico. Do outro, o politicamente correto. Uma simplicidade e uma truculência que – para dizer o mínimo – metiam/metem medo e prometiam/prometem um futuro sombrio ou colorido, dependendo do ponto de vista.
No Campo de Marte, um espetáculo de puro horror e cafonice. Muito triste ver aquela gente travada e sofrida oferecendo-se à “glorificação do Senhor Jesus”. As tias de cabelos compridos e ensebados, vestidas com as burcas que compraram na C&A, ofereciam suas almas ensebadas para um acuado “Senhor Jesus”, ele mesmo, há dois mil e dez anos crucificado para salvar os homens e agora refém da histeria horripilante do povo de Deus. Ao contrário de uma celebração no candomblé – fiz meus cálculos –, onde o humano e o sobrenatural se entrelaçam numa mistura de lubricidade e alegria, faltava – principalmente – beleza pra’queles jagunços entregarem suas alminhas, tanto fazia se iriam entregá-las pro senhor capeta ou pro “senhor Jesus”.
Além da feiúra, faltava tesão, faltava calcinha vermelha. Exatamente aquilo que sobraria ou seria desperdiçado pela bicharada um dia depois, na Av. Paulista. Ambos, o bem e o mal (?) nos seus respectivos escaninhos, e sob controle.
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Tenham todos um feliz Natal e um ótimo 2011. Tô cansado, e entro de férias. Pretendo torrar o adiantamento milionário que recebi da editora Barcarolla em Las Vegas. Volto somente no final de janeiro.
Abraços,
MM
* Mirisola é autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.
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