18 de dezembro de 2010

O princípio da carne e outras angústias




Poucos artistas latino-americanos sintetizaram de maneira tão perfeita a atmosfera de pesadelo político do continente durante o século XX. Em suas telas, rostos de pavor e perplexidade. Não só humanos, mas também de cavalos, como na tela acima, para mostrar que o horror contamina toda a natureza. Quando lembro da leviandade com que frequentemente se retrata os nossos anos de chumbo, sinto necessidade de contemplar obras repletas de sangue, fúria e tristeza, como as do argentino Luis Felipe Noé. Sua força não reside na descrição fria e imparcial dos eventos históricos. Como diria o crítico italiano Argan, escrevendo sobre Wiliam Blake, elas são "síntese e não análise, inspiração e não pesquisa, subjetividade e não objetividade", mas ao mesmo tempo possibilitam uma representação muito mais precisa, muito mais carnal, muito mais contundente, muito mais próxima da nossa experiência do que um texto rigorosamente (ou supostamente) científico sobre o assunto. Elas resgatam para mim um sentido histórico, de um tempo que não vivi e que por isso mesmo eu preciso construir espiritualmente com auxílio da imaginação.

"Há para mim uma evidência no domínio da carne pura, e que não tem nada a ver com a razão", dizia Artaud, o poeta louco (e por isso mesmo tantas vezes o mais lúcido de todos). A nossa cultura, a nossa arte, fervilha no sangue, não no cérebro; o sangue como metáfora das camadas mais profundas da alma (ou o "inconsciente"); camadas essas, porém, que podem ser vistas na superfície da pele, na melanina, no cabelo, na voz, no formato do nariz e dos pés.

Ao mesmo tempo, a arte moderna também possui um aspecto profundamente racional. Em sua Crítica do Juízo, Kant argumenta que a representação artística, nascida de uma intuição pura, espelha-se no entendimento para ganhar forma. Sou um apaixonado pela teoria estética de Kant, que alguns segmentos da crítica pósmoderna, tentam desqualificar. Ela se encaixa perfeitamente em minha análise da obra de Noé. Ele produz uma visão intuitiva do horror, mas o seu traço busca - de maneira atormentada, tortuosa, aparentemente insegura, mas firme em seu objetivo - o registro histórico, concreto, fazendo uma obra explicitamente política.

A arquitetura de seus quadros tem uma coerência urbana, cosmopolita. Estamos no meio da multidão, quer dizer, sabemos que estamos no meio da multidão, ouvimos seus gritos, sentimos o cheiro, pressentimos sua presença e sua agonia, mas não vemos ninguém. Diante de nós, apenas o rosto amargurado diante do espelho.

Há um clássico da literatura argentina intitulado "Os sete loucos", um livrinho muito cultuado no país; e que desembaraçou-se das críticas extremamente negativas que enfrentou por muito tempo e se tornou amado e respeitado por leitores e, por fim, também pela academia. Roberto Arlt é um escritor irregular, estranho, não tem a magistralidade perfeccionista e brilhante de um Borges ou Cortázar, mas sua obra, assim como a pintura de Noé mais tarde, também reproduz com uma fidelidade angustiante a atmosfera de idealismo e desespero de uma juventude perdida e sem esperanças.

Semana passada estive no Museu de Arte Moderna para ver as telas de Noé, por isso falo dele por aqui. É interessante contrastar aquele momento atormentado da história latino-americana com nosso presente, marcado pela estabilidade, pelo crescimento e pela democracia.

Ah, claro, existem ainda fantasmas. Como que saídos das telas do pintor argentino, ou das páginas de Arlt, eles tentam ser trágicos, mas são apenas farsantes, com seus gritinhos de medo, com seus esgares hipócritas. Inventam "ameaças à democracia" a cada vez que o povo dá um passo à frente no processo democrático.

Ontem mesmo, os jornais exibiram, orgulhosos, um relatório britânico que apontava nossa democracia como "imperfeita", tendo caído de 41º para 47º nos últimos anos. Nenhum editorial fez um contraponto crítico a esse ridículo insulto imperialista à heterogeneidade das democracias no mundo. Segundo a The Economist, EUA e Inglaterra, eles sim, são democracias "perfeitas". A repórter do G1 dá a notícia num tom sério, submisso, onde mais que nunca caberia uma reação bem-humorada, ferina e inteligente. Quase toda a América Latina, com exceção do Uruguai, tem democracias "imperfeitas". A pesquisa da Economist é tão caricata que inclui a França no rol dos "imperfeitos", como se a pujante república francesa tivesse uma democracia inferior a de um país onde o presidente tem que beijar a mão da Rainha antes de tomar posse. Ah, como os franceses devem estar se divertindo com essa matéria!

Voltando, porém, ao nosso querido Noé, vale comparar também sua obra atormentada dos anos 60 com seus trabalhos tardios, muito mais suaves. Curiosamente, eu me não me interesso, porém, por essa fase tranquila. Em minha visita ao MAM, minha atenção se voltava exclusivamente para as obras pungentes da década de 60.

Mais uma vez, então, lembrei como nós, latino-americanos, disperdiçamos um dos períodos mais brilhantes da história moderna do ocidente com todos esses malditos golpes de Estado. Ontem eu assisti, no vídeo, "When you're strange", um documentário recente sobre o The Doors, narrado por Jonnhy Deep, o que me fez refletir: eles também viveram momentos terríveis nos anos 60: assassinato de Kennedy e de Martin Luther King, para citar apenas dois exemplos. Mas a maior parte de sua juventude teve a oportunidade de se divertir de uma maneira como nunca se viu antes na humanidade e, principalmente, assistiram a uma explosão cultural de dimensões épicas.

Por isso mesmo um cara como Noé, ou para falar de alguém mais popular, como Chico Buarque, são tão importantes. Eles nos redimem um pouco do tenebroso deserto político que atravessamos nas décadas de 60 e 70. A gente sofreu, abaixou a cabeça. Choramos em silêncio. Mas tivemos nossos momentos de brilhantismo! Só existe um Chico no mundo! Só existe um Noé! A dor que experimentamos foi única - e ao mesmo tempo, naturalmente, uma dor universal. Para encerrar este breve ensaio com classe, recordo a bela teoria hegeliana: o Espírito pode ser infinito, universal e eterno, mas ele apenas se torna concreto, apenas se torna realmente vivo, quando encarna num ser humano. Seja homem ou mulher, num ser humano, carajo, num ser humano!

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