22 de dezembro de 2010

O maior clássico da literatura universal

Reproduzo abaixo um post dos tempos do Óleo do Diabo (e aproveito para publicar o desenho que o Latuff - defensor do nome Óleo do Diabo - fez pra mim outro dia num boteco da Lapa),



porque é um tema que me interessa sumamente e como tentativa de virar a página da polêmica desagradável em que me meti nos últimos dias. Sou um cara da paz, não gosto de briga.

Há uma outra razão para mudar de assunto radicalmente: o noticiário político, com esse vai-e-vem de ministros, está muito chato. O post abaixo, portanto, é algo eu queria reler e estudar com atenção, traz links que gostaria de revisitar.  E quero voltar a trocar ideias sobre esse livro - o post é sobre a Ilíada - com as pessoas que o conhecem, ou querem conhecê-lo.

Aproveito para desejar bom feriado a todos. O blog deve reduzir o ritmo nos próximos dias.

Abaixo o post mencionado:

O maior clássico da literatura universal

Às vezes acho que a Ilíada é o maior clássico da literatura universal. Todos os elementos de um romance moderno estão presentes. Mais que isso, os germes da cultura ocidental, esse caldo de orgulho, caos, ambição, generosidade, fervilham nas páginas dessa obra - cuja força dramática e estrutura formal harmonizam-se de forma tão sofisticada que chego a duvidar se houve alguma que jamais se lhe igualou.

O livro narra a famosa guerra de Tróia, e sua veracidade histórica hoje, depois de altos e baixos (anos de adventismo absoluto seguidos de ceticismo total), é bastante respeitada. Mas isso não importa tanto, já que, havendo ou não deturpado fatos reais, o glorioso relato de Homero tornou-se a primeira grande coluna da civilização grega, feita de material muito mais duradouro que o mármore das ruínas de Atenas.

Não há escritor ocidental que não seja herdeiro direto da tradição homérica. Até o início do século XX, quase todos os grandes escritores tinham bom conhecimento da língua de Sócrates.

Abaixo uma transliteração fonética dos primeiros versos da Ilíada:

menin aeide thea Peleiadeo Achileos
oulomenen, he muri' Achaiois alge' etheke

Os mesmos versos no original:

μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος
οὐλομένην, ἣ μυρί' Ἀχαιοῖς ἄλγε' ἔθηκεν

Que significam:

Canta, deusa, a ira de Aquiles, filho de Peleus, a terrível ira que trouxe incontáveis desgraças aos Aqueus

A sua tradução literal é assim:

Ira canta deusa filho-de-Peleus Aquiles
Terrível, que incontáveis Aqueus aflições causou

A primeira palavra da Ilíada - μῆνιν - é pronunciada "menin" e significa "ira". Mênin. A primeira letra é nossa conhecida. É um m. A segunda é uma letra exclusivamente grega, o ῆ, o êta, que corresponde a nosso "ê". O ν deles é nosso n. Em seguida, outra velha conhecida, a letra i, ou ι. Menin. A palavra está declinada no acusativo, ou objeto direto. Em sua forma nominativa, escreve-se μῆνις e pronuncia-se Mênis. O ς grego tem sempre o som de s. A ira de Aquiles. μῆνιν Ἀχιλῆος. Menin Aquileos.

Na internet, há diversos sites com audios da Iliada no original. O melhor, para mim, é esse, de Stanley Lombardo.

Além da beleza poética, a Ilíada apresenta qualidades insuperáveis de estrutura romanesca, com diálogos extremamente divertidos. A história inicia, como se sabe, com uma briga entre Aquiles e Agamenon. Aquiles é um príncipe e chefe militar, mas de um reino relativamente pobre. Sua fama advém de suas inigualáveis habilidades marciais. É o maior guerreiro da história antiga. Tem uma personalidade irascível e soberba. Agamenon, por sua vez, é o chefe supremo dos exércitos reunidos às praias de Tróia e, de longe, o mais rico e poderoso de todos os monarcas gregos. Obrigado a restituir Criseis, sua escrava e amante, capturada durante as primeiras escaramuças em cidades vizinhas de Ílion (como Tróia é chamada pelos gregos), e irritado contra Aquiles, que o provoca constantemente, em público, Agamenon decide apossar-se da garota de Aquiles, Briseis, também uma cativa de guerra. Trata-se de uma afronta deliberada, um gesto que visa humilhar e desmoralizar Aquiles, que a suporta, todavia, sem reagir, em virtude da imensa superioridade militar de Agamenon. Atenas, a formosa deusa da inteligência e da guerra, aconselha-o a ser prudente e desafogar-se apenas verbalmente. O guerreiro, então, vocifera sua indizível cólera contra Agamenón, através do seguinte discurso (observem a liberdade com que Aquiles se dirige ao rei mais poderoso entre os gregos):

- Miserável! Bêbado! Tens a cara e a sem-vergonhice de um cachorro e o coração mais frouxo que de um bezerro! Covarde, que jamais teve a coragem de empunhar armas à frente de teus exércitos! (...) Rei tirano de teu povo, que se não mandasse em homens tão vis, seria este o último ultraje que fazes!

Sua arenga raivosa vai longe. Reproduzi apenas um pequeno trecho. O episódio revela que os gregos, na sua antiguidade (a Iliada é escrita 800 anos antes de Cristo e a guerra de Tróia havia ocorrido uns 500 ou 600 anos antes), já eram um povo que cultivava uma enorme liberdade de expressão e onde os reis, assim como os deuses, eram tratados como homens, igualitariamente.

Gosto de especular com a história antiga. Observo, por exemplo, que a Palestina, onde nasceu Jesus, é bastante próxima dos gregos e das nações onde afloraram os maiores gênios da arte e da filosofia, como o próprio Homero. Teriam os livros gregos chegado à Palestina daquela época? Teria Jesus lido os gregos? É possível. A Palestina era colonizada pelos romanos, os quais rendiam constante tributo à cultura e à lingua grega. Todos os homens cultos de Roma sabiam grego. O Novo Testamento, aliás, segundo muitos estudiosos, foi escrito em grego, e somente depois traduzido para o Latim.

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Assim meu tempo escorre, tranquilamante, entre a Ilíada e Nine Stories, de J.D.Salinger. Os cães prosseguem latindo na pradaria. Eu os ouço pela manhã, quando leio jornais e colho meu balaio diário de café. O país vai bem e a mídia vai mal, graças a Atenas. A felicidade, enquanto isso, a gente cata na rua, nos bares, entre uma frase e uma risada, nos livros, nos discos de Charlie Parker.

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Aliás, por falar em Parker, que tal ler o conto O Perseguidor, de Julio Cortazar, uma deliciosa ficção em torno do louco jazzista negro americano?

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Grande Sertão Veredas, diz Alexei Bueno, e eu assino embaixo, é nossa Ilíada.

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Quer viajar um pouco no grego antigo? Curte esse site. (Primeiro tem que instalar, se não o tiver feito, o Quick Time).

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Quem se interessar por estudar a Iliada no original, sugiro esses três sites:

1) http://www.library.northwestern.edu/homer/html/application.html
2) http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text.jsp?doc=Perseus:text:1999.01.0133
3) http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/eieol/grkol-2-X.html

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