24 de fevereiro de 2007
O esfomeado louco de Paris
O Esfomeado Louco Maldito de Paris, ou Anti-Jabor Revisitado, ou A Dialética da Inveja Descontruída
Querida, tenho tentado extrair, como de um fruto seco, alguma utilidade da minha amargura. Na verdade, sempre foi assim. Sobrevoando as ruas de Paris, sob o olhar sarcástico das quimeras da Notre-Dame, percebo que sempre foi assim. Carrego uma maldição um tanto ridícula e com nove anos eu me ajoelhava, sozinho no quarto, rezando à Cristo, ou que é pior, imaginando-me a propria reencarnação de Cristo. De forma que sempre fui louco, mesmo após admitir, ainda na primeira infância, que não poderia realizar mágicas e transformar o mundo conforme o meu desejo. Foi como louco que me aproximei Dela, da Maldita Musa, que me lancei em seus braços, atraído pelo perfume de seu Cio. Meus amigos todos foram ou são loucos. Alguns mesmo foram internados. Afora isso, uma solidão desgraçada, e a consciência pesada por uma maldade tão sólida como a Torre Eiffel. Uma espécie de consciência histérica do mal. Tem sido isso, entre muitas outras coisas, minha desgraça e minha decadência. Claro que invento, que minto, que trapaceio, e talvez tudo não passe de uma longa crise (e o que é pior, fingida), mas enfim a vida, para os infelizes e solitários, não seria isso - uma longa e desesperada (fingida) crise?
A ficção, para mim, é o malte do sofrimento, o fel amargo de um riso falso. Mas não cobro isso dos outros, não sou o psicopata que aponta o dedo para a vulgaridade (ou inteligência) alheia. A fé que ponho na beleza deste sofrimento é algo de inominavelmente egocêntrico. No entanto, o que fazer se a vida se me revela somente através deste pobre recurso? Contemplei com atenção os detalhes curvos dos prédios, os rostos em pedra talhados sob as janelas, as esculturas impressionantes presas aos grandes Arcos - que são três ou quatro, incluindo o mais famoso, o do Triunfo, ao final do Champs-Elisée. Escutei também o sussurro dos fantasmas que assombram as velhas catedrais e topei, nos arredores de Saint-Germain de Prés, com um dos monges que trabalhou no filme O Nome da Rosa.
O aspecto terrível dessas experiências é o sentimento de vazio que delas derivam, sabe? Eu também observei a oculta histeria das parisienses, sempre prontas a um grito que causaria a destruição da cidade que Hitler desejou eliminar do mapa, invejei a elegância dos sobretudos, os cabelos bem penteados, e muitas vezes, ao entrar nos cafés, imaginei-me como um SDF a incomodar a paz aconchegante dos burgueses. Isso porque, em Paris, os SDF se vestem bem, e você só pode percebê-los por um detalhe: barba mau feita, odor característico, furo no casaco e, principalmente, uma grande vergonha estampada no rosto. O meu sobretudo já estava todo furado e, apesar de eu cheirar bem, porque tomava banho (quase) diariamente, eu gaguejava na hora da falar um francês horrível, e por fim, temendo aparentar vergonha, acabava sentindo-a ainda mais intensamente e exibindo o que se chama, conforme o vulgo, cara-de-bunda.
De resto, não resta nada. O que não sei, eu desisti de saber, pois perco todo tempo me absorvendo em sofrimentos pueris, urbanóides, os quais, tivesse eu nascido no sertão da Paraíba, me serviriam de alimento (como diria o Ivan Lessa) e a fome que passei em Paris foi mais elegante que uma fome na Baixada Fluminense, com certeza.
Pra dizer a verdade, se é que ainda é possivel dizer a verdade, impressionou-me o Louvre, que me lembrou um elefante vinte vezes maior que o natural, fumando um baseado gigante e, olhos nos meus olhos, recitando um poema do Dylan Thomas. O rio Sena evocou-me mil metáforas sanitárias, por me lembrar um magnífico e poético esgoto a céu aberto, onde Voltaire cuspiu seu desprezo pelo Antigo Regime, Henry Miller o seu pelos United States, e Rimbaud vomitou todo o absinto ingerido antes de comer o cu de Verlaine na Pont-Neuf.
O fato é que estou puto - de inveja, naturalmente, apesar do privilégio de conhecer Paris - por Eles, Eles e Eles, etc, o caralho bêbado fazendo quatro pra polícia, não terem me contratado para escrever crônicas, ou atualizar um blog, como fizeram com outros. Eles merecem, deixa eles vencerem na vida, coitados! Eu sei, estou manchado com uma pecha sinistra (tendências políticas equivocadas, falta de talento, ou o fato de ainda não ter lançado o meu romance lírico e pós-moderno, tudo junto, sei lá), num país cheio de censura branca, velada, em que todo mundo sabe muito bem o que pode e não pode escrever e fica bem quietinho - estão mais é certos, eu é que estou errado, sempre estive errado, afinal eu sou Cristo, não sou?, e Cristo foi um otário, e sou Napoleão também, e o baixinho foi besta de invadir a Rússia em pleno inverno. Enfim, sou louco e nem um pouco feliz, mas, pensando bem, não quero ser feliz, quero apenas ser rico, para poder ser independente desses porras todas, beber meu uísque importado, escutar meu blues e falar mal da mídia, do mundo pop, dos governos merdas, de mim mesmo... Uma espécie de Jabor amulatado, anti-Global, que ainda acredita no Brasil, quem sabe? Com amor, Miguel.
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Bom te ler Miguel. É você. A sinceridade é uma arma poderosa para um escritor. E como disse o meu amigo Samuel sobre uma crônica minha, foi uma bela reportagem. Afinal, assim seria o jornalismo, se não tivesse atrelado aos grilhões da falsa neutralidade, do texto técnico - com se isso fosse possível - que serve só aos que manipulam o 4º poder, seja no agendamento ou nos diversos níveis de edição. Um homem contando uma história, inteiro.
Fico feliz, pois tenho acesso a esse olhar ao estrangeiro de um jornalista e, mais, de um amigo.
Aliás, em dose dupla, com a Pri, são dois amigos e poetas a estender a percepção coletiva de quem os tem em alta estima.
grande justo, obrigado por comentar esse texto louco. acho que paris é um grando surto megalomano, de muitos reis, revolucoes e imperadores megalomanos, um tipo de megalomania magnifico, lindo. forte abraço
Transparecendo a luz da cidade. Bueno!
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