As recentes guerras entre os traficantes do Rio, ao atiçarem a curiosidade pública sobre o tema, ajudaram a reforçar algumas verdades que andavam meio obscuras. Primeiro: a população dos próprios morros cariocas tornou-se a grande consumidora das bocas de fumo. Paulo Lins, o romancista de Cidade de Deus, profundo conhecedor da realidade das favelas, diz isso há anos, conforme se pode verificar em seu depoimento ao documentário de João Moreira Salles sobre traficantes, Notícias de uma guerra particular.
As drogas se popularizaram. Compra-se maconha a 1 ou 2 reais. Cocaína, por 2 a 50 reais. Crack a 1 real. Esse fato alivia a consciência da classe média, que andou cabisbaixa após a repercussão do filme Tropa de Elite, onde um playboy da zona sul adquire maconha diretamente no morro, um caso raro, mas ainda realista. O morro oferece preços mais baratos, então é evidente que muitos playboys, pensando no lucro, preferem comprar lá do que junto a "amigos" do bairro, que vendem a mercadoria a um custo muito mais elevado.
Há outros fatores relevantes a serem esclarecidos. Em primeiro lugar, não há playboys somente na zona sul. Todas as zonas do Rio de Janeiro detêm boa quantidade da mesma espécime - jovens de uma faixa de renda que lhes permite viver "intensamente". Há áreas fora da zona sul, aliás, que apresentam um perfil sócio-econômico parecido ao da zona sul. O morro dos Macacos, por exemplo, onde ocorreram os ataques ao helicóptero da PM, situa-se em Vila Isabel, um bairro classe média da zona norte, vizinho à Tijuca, também um bairro de bom poder aquisitivo.
As favelas cariocas, por outro lado, vêm registrando um desenvolvimento econômico significativo nos últimos anos. Em muitas dessas comunidades, o desemprego, hoje, é baixo. O problema social no Rio está, principalmente, na Baixada Fluminense, e em favelas específicas.
O tal poder paralelo das favelas consolidou-se no Rio de Janeiro durante a fase mais aguda dos anos de chumbo. A polícia carioca, assim como suas congêneres em outras unidades da federação, perdera qualquer noção de direitos humanos; e se torturava e matava jovens de classe média, é evidente que praticava barbaridades muito piores com rapazes anônimos, pobres e pretos, que viviam nas comunidades carentes. A saúde sócio-econômica das favelas degenerou terrivelmente durante a ditadura. O processo de concentração de renda criou empregos bons para a classe média branca e produziu um verdadeiro vácuo nas periferias. Mais que isso, o autoritarismo insensível dos governos militares destruiu, por exemplo, a já frágil agricultura familiar do Rio de Janeiro, sobretudo do norte, provocando uma avalanche migratória que superpovoou zonas inteiras da cidade, na baixada e nos morros. Esses foram os fatores que levaram as populações carentes a desacreditarem totalmente no poder público - até hoje mais temido que o próprio tráfico - e a criarem uma cultura de auto-defesa, uma cultura para-militar, cujo financiamento, por ser ilegal, ocupa uma atividade que não concorre com nenhuma outra, não havendo, em tese, oposição econômica ao tráfico.
Os anos 80 apenas ajudaram a manter esse tipo de situação. O fim da guerra fria inundou o mercado negro mundial com armas boas e baratas, oriundas de uma super-produção já sem demanda. A produção de coca explodiu na América do Sul, baixando o preço da droga e criando novos mercados, de consumidores com menor poder aquisitivo - o que elevou exponencialmente a quantidade consumida em toda parte, principalmente nas próprias comunidades.
O racismo é um grande problema para as comunidades do Rio. Quem conhece as favelas cariocas sabe que há uma hegemonia absoluta de negros. O mercado de trabalho no Rio é racista. Não há garçons negros na cidade. É rara a presença de negros em trabalhos de zelador. Prefere-se, sempre, dar emprego a nordestinos, mais disciplinados e confiáveis, talvez em virtude de não apresentarem as patologias psíquicas decorrentes do racismo e da escravidão. O racismo no Brasil tem uma história própria e, algum dia, um historiador deveria escrevê-la. Há um constructo cultural que nasce junto com a escravidão. O Rio foi o maior mercado de escravos da América Latina. Na época, quase nenhum branco trabalhava. Qualquer barnabezinho possuía dois ou três escravos para fazer todo o tipo de serviço: varrer a casa, lavar a roupa, engraxar sapatos. Muito antes da Lei Áurea, tal situação já havia degenerado em criminalidade. Clóvis Moura conta essa história em seu clássico, Rebeliões da Senzala, no qual relata a formação de milhares de quilombos em todo país, sobretudo nas regiões com maior concentração negra. O Rio, em particular, assistiu à criação de incontáveis quilombos. Como eram clandestinos, refugiavam-se nos altos mais inacessíveis dos morros cariocas, e, não possuindo agricultura suficiente para se auto-sustentarem, praticavam furtos sistemáticos, muitos seguidos de morte.
Além disso, os escravos usavam maconha nas senzalas, para aliviar as dores físicas decorrentes de espancamentos e trabalhos forçados e amortecer a consciência do estado humilhante em que viviam. A maconha é um conhecido anestesiante, físico e psicológico. Provavelmente os quilombolas assumiram o tráfico de maconha desde os tempos mais remotos, fornecendo para seus irmãos na senzala, e para mulatos e brancos que também apreciavam a erva.
O histórico de tráfico e assalto gerou, por parte do poder público (dominado pela elite branca), um sentimento de vendeta e truculência em relação aos negros, que sempre foram espancados e mortos pela polícia sem que isso gerasse maior repercussão. Pior, mesmo quando há repercussão, ela não é sequer notada. Outro dia uma amiga, conversando, citou uma crônica de jovem escritor de Copacabana, cujo tema era a falta de disposição do carioca para protestar. A solução, apontada por essa crônica ficcional, seria interromper o consumo de chope na cidade. Eu logo pensei: carajo, a população nessas favelas queima ônibus, interrompe o trânsito de avenidas enormes, manda fechar o comércio de bairros inteiros, tudo com enorme risco da própria vida, porque manifestações nessas áreas nunca recebem o mesmo tratamento cuidadoso que a polícia dispensa às passeatas em Copabana ou Ipanema, e um cronista diz que o carioca "não protesta"...
O novo prefeito, o jovem Eduardo Paes, resolveu seguir os conselhos dos missivistas do jornal O Globo, e concentrar sua política de segurança na repressão ao vendedor ambulante. Esse tipo de política é especialmente ofensiva ao morador da favela, porque o emprego de camelô sempre foi a alternativa de sobrevivência preferida pelo negro pobre, deseducado, porém orgulhoso, cuja psicologia atormentada por séculos de escravidão lhe dificulta adotar aquela submissão necessária ao trabalho humilde. O trabalho de vendedor ambulante, mesmo pagando pouco, permite-lhe autonomia e independência. Não tem patrão, ajustando-se assim às características psicológicas do negro. Quando prefeito, governador e mídia se unem numa campanha violenta contra a camada profissional mais humilde do Rio - os vendedores ambulantes -, perseguindo-lhes pelas ruas como cães, tomando-lhes as mercadorias, é evidente que o impacto emocional dessa política sobre a consciência das favelas é terrível, e provoca as condições ideais para o nascimento daquela rebeldia criminal, aquela subversão com ares semi-políticos, que tão bem caracteriza o jovem traficante carioca.
Há momentos em que me pergunto se não estou me tornando um desses malucos com idéia fixa. Já conheci vários e todos em geral aparentam ser inteligentes e bem informados. Digo isso porque, nessa campanha antiambulante, há uma força fundamental: é o jornal O Globo. Será que eu tenho mania de atacar o Globo? Não quero acreditar nisso. O Globo, a maior força política de facto na cidade, persegue há décadas, em seus editoriais, o comércio ambulante, e nunca publicou um mísero artigo, ou entrevistou um especialista para tentar explicar porque essa atividade é tão popular no Rio, nem para alertar sobre as consequências negativas que um combate insensível e truculento aos trabalhadores ambulantes pode trazer à psicologia já traumatizada por trezentos anos de escravidão do negro favelado carioca. Os políticos apoiados mais entusiasticamente pela família Marinho, como o ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda, sempre foram os que se notabilizaram por uma truculência desmedida, quase vingativa, contra ambulantes e trabalhadores informais. Já o Brizola, que procurava evitar o confronto entre Estado e comunidades, na tentativa de estabelecer para as favelas uma política de longo prazo, lastreada na educação e no respeito, recebeu combate implacável da grande imprensa fluminense, e foi taxado, pelos conservadores que orbitam em torno dela, de "amigo" dos traficantes.
Muitos cariocas assistem, horrorizados, a guarda municipal roubar, descaradamente, as mercadorias dos ambulantes. Claro que é necessário organizar o comércio ambulante no Rio. Mas é preciso formular estratégias mais sensíveis socialmente, com projeções de longo prazo, que evitem produzir traumas psico-sociais que resultem em revolta contra o poder público. Afinal, como nasce uma consciênca criminosa? Não seria um processo de degeneração moral e psicológica, para a qual a falta de perspectiva profissional contribui enormemente? Não devemos esquecer que, até poucos anos atrás, o salário mínimo correspondia a menos de 50 dólares. Não era possível sobreviver com isso no Brasil, muito menos no Rio de Janeiro, cidade que apresenta um dos custos de vida mais altos da América Latina. Acredito que esse fato não devia ser estimulante para um jovem impetuoso da favela, o qual, sentindo-se cheio de energia e coragem, preferia o mundo aventuresco do crime à uma vida de terríveis provações de um sub-emprego. Hoje, com o salário mínimo no Rio superior a 400 reais (mais de 200 dólares), o trabalho formal não é mais tão humilhante. Um salário de 400 reais para um jovem que anda mora com seus pais, por exemplo, lhe permite se divertir minimamente. E aí reentramos no ciclo da droga. O jovem do morro agora tem dinheiro para comprar drogas, assim como tem o rapaz da zona sul. E a falta de oportunidades de lazer na favela acaba incentivando-o a optar por esse tipo de diversão. Mas o problema do consumo de drogas existe em toda parte, inclusive nos países desenvolvidos. E onde existe consumo, há oferta. E tudo que é proibido é caro e tudo que é caro proporciona lucros altos. E mesmo na sociedade mais desenvolvida, não faltará gente interessada em explorar uma atividade que gera lucros altos. Essas são outras questões, que o blog colocará em debate em breve.
26 de outubro de 2009
Pensando as favelas
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Raro encontrar inteligencia em áreas onde predomina o preconceito. Parabéns.
Julio Cesar Montenegro
Essa é a midia que queremos ver e ter no mundo.
Muito obrigado pelas palavras que estavam entaladas na
minha garganta.
O que me deixa mais bolado, é que de fato a dor do pobre não sai no jornal. Por isso, leio blogs...
Puxa, este texto dá o que pensar....
pô, miguel! assim é que se fala.
essa história da escravidão e de suas sequelas até hoje precisam ser recontadas, meu camarada.
o rio do "o negro no futebol brasileiro" de mário filho vai nesse rumo.
parabéns, bicho!
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