A palavra preferida da imprensa brasileira é: crise. Desde que comecei a ler jornais, aos doze ou treze anos, não me lembro que se tenha passado um mês sem uma grave crise, seja política, econômica, política, moral, social. Pode-se explicar isso comercialmente. Crises geram ansiedade, um dos ingredientes emocionais mais eficazes para se incentivar o consumo... de jornais.
A crise galvaniza as páginas de jornais com tintas de suspense. Trata-se de uma técnica estética usada a serviço do jornalismo comercial. Amedrontadas, as pessoas correm para as bancas. Não creio, todavia, que os donos dos meios de comunicação admitam para si mesmos essa estratégia. A inteligência humana é, em grande parte, intuição. É usando a intuição, portanto, que as pessoas, produtores ou receptores, utilizam e manipulam as informações.
Entendo, por outro lado, que a crise não é inventada pela mídia. É realíssima e, de fato, representa um perigo para empresas e trabalhadores, na medida em que desestrutura o crédito e reduz o consumo. O que a imprensa parece esquecer é que, dentre os remédios para saná-la, figura também a maneira como a interpretamos. A crise financeira atual possui um vetor psicológico, e, portanto, precisa de uma cobertura responsável desse ponto-de-vista.
Há, ainda, uma outra forma de ver as coisas, que é procurar desmistificar ou destensionar o conceito de crise. Crises fariam parte da rotina de nossa civilização industrial e pós-industrial. Seria o reverso da moeda da aceleração cada vez maior do processo histórico, com invenções tecnológicas que revolucionam o mundo de dez em dez anos. O mundo vive uma crise constante porque está em mutação veloz. Seria importante, pois, que governos e mídias incorporassem as crises como uma característica estrutural, inerente a mundo que se desenvolve vertiginosamente. Cientes dessa realidade, os governos poderiam ampliar os sistemas de proteção social, para evitar colapsos humanitários, e a mídia, por sua vez, contribuiria para evitar o processo de entropia, ou desordem interna, gerado pelo nervosismo que o termo crise deflagra na sociedade - faria isso através do destensionamento e atualização do conceito: crises deixariam de ser passos na direção de um apocalipse (que nunca chega, afinal, pois o mundo sempre supera as crises e se torna mais forte) para serem fatores normais, necessários, um processo doloroso que estimulam a criatividade.
Seria importante, sobretudo, que a imprensa se mostrasse realmente interessada na superação da crise. Enquanto a imprensa internacional, mesmo os órgãos mais conservadores, aponta as razões pelas quais o Brasil é o país com melhores condições de atravessar incólume a crise internacional, nossos editores de opinião, em vez de aprofundarem esses argumentos, mostrando porque analistas estrangeiros acreditam tanto no Brasil, entregam-se ao jogo baixo partidário, transformando um problema que pode afetar o estômago e o destino de milhões de brasileiros numa gincana infantil para derrubar a popularidade do governo.
Por exemplo, o Brasil tem condições econômicas que o diferenciam de outros países em crise? Os EUA vivem uma dicotomia quase trágica: possuem o maior consumo per capita de petróleo do mundo, e não tem mais reservas suficientes para atender essa demanda, dependendo desesperadamente de jazidas situadas em países com os quais mantém relações extremamente instáveis. Nesse campo, o Brasil vive situação oposta. Chegamos à autonomia energética em petróleo e estamos na beira de nos tornarmos grandes exportadores.
Os EUA iniciaram a produção de etanol a partir do milho, o que se revelou uma das maiores imbecilidades em mil anos, em função da baixa produtividade energética do milho e do custo alto do empreendimento. Investiram centenas de milhões de dólares nessa atividade e agora não sabem como voltar atrás. Para cúmulo da estupidez, a iniciativa inflacionou o mercado de grãos, gerando um efeito em cascata que afetou a inflação do mundo inteiro.
Já o Brasil produz etanol a partir da cana-de-açúcar a custos infinitamente mais baixos, sem subsídio estatal, obtendo uma produtividade energética oito vezes superior ao milho, e sem influenciar o preço dos alimentos.
É claro que os EUA não são o país mais poderoso do mundo à tôa. Eles sempre investiram pesadamente em pesquisa, e estou certo que darão a volta por cima em mais essa crise. É importante notar, porém, que a causa da crise foi a implantação e o aprofundamento, pelo governo americano, de políticas direitistas, tacanhas como toda política direitista, que são, em resumo: tudo para os ricos e nada para os pobres. Subsídios bilionários para meia dúzia de plantadores de algodão, que contam com apoio de senadores, e ferro em milhões de trabalhadores rurais norte-americanos. Redução de imposto para milionários e arrocho fiscal na classe média baixa. Guerra. Repressão aos imigrantes. Desregulamentação do mercado financeiro, soltando a raposa dentro do galinheiro. Eliminação de programas sociais. Privatização da saúde e da educação.
A internet foi inventada nos EUA com recursos estatais. Toda descoberta relevante para a economia americana teve o dedo do Estado. Não é racional, portanto, a ideologia conservadora que se apoderou do governo americano, e que estendeu seus tentáculos pelo mundo inteiro, o desprestígio constante da função do Estado para a economia. Se o Estado é moroso, lento, incompetente, cabe à sociedade modernizá-lo sim, mas sem diminuí-lo, sem substitui-lo pela iniciativa privada. O setor privado, naturalmente, tem papel crucial no desenvolvimento das nações. O setor privado é, em última instância, o indivíduo e seu talento, o indivíduo e sua liberdade radical, o indivíduo e sua criatividade singular.
*
Quero desviar um pouco de assunto para denunciar três exemplos clássicos de desinformação que observei nas últimas 48 horas.
1) Roberto daMatta pega uma frase do presidente Lula, numa entrevista para a revista Piauí, e a descontextualiza histericamente, produzindo um artigo patético e preconceituoso. Lula afirmara que não começa seu dia lendo os jornais. Que tem uma equipe que seleciona as matérias mais importantes, enfatizando porém que qualquer artigo ou matéria importante sempre chegam em suas mãos. DaMatta ficou somente na frase "não lê", e saiu discorrendo, chorosamente, sobre o sofrimento devastador que o afligiu ao saber que o presidente da República, o homem mais importante do país (ele aumenta a importância pessoal do presidente, quase transformando-o num imperador-deus da Antiguidade), não lê. Como intelectual medíocre que é, DaMatta fetichiza a leitura, conferindo-lhe um status existencial exagerado. Ora, eu sou um leitor obsessivo, mas aprendi a ver que não sou melhor que ninguém por causa disso. A literatura, em si, não deixa ninguém mais inteligente. Shopenhauer afirmava que pretender que guardemos todos os livros que lemos em nosso espírito é como pensar que podemos guardar toda a comida que ingerimos, ao longo da vida, em nosso estômago. A gente lê, mas esquece. Pronto. O que vale, mais que a leitura, é a inteligência. A leitura ajuda a inteligência, mas não a determina. Sócrates praticamente não lia livros, e nunca escreveu um, e no entanto é considerado o fundador da filosofia moderna e o homem mais inteligente de todos os tempos. Jesus Cristo também não leu quase nada, nem escreveu, e todos o respeitam profundamente como pensador revolucionário e líder espiritual.
2) Na ânsia de criticar a decisão do ministro da Justiça, Tarso Genro, de conceder asilo político concedido ao italiano Battisti, e aproveitar a oportunidade para morder a esquerda brasileira, o Globo traz à tôna, pela enésima vez, o caso dos dois pugilistas cubanos. Os atletas abandonaram a competição (o Panamericano, realizado em 2007), seduzidos por um empresário alemão, que lhes pagou bebidas, drogas e prostitutas. O alemão desapareceu e os atletas, sem dinheiro, hospedados num hotel em Búzios, ligaram para a polícia. Quando os agentes chegaram, os cubanos os abraçaram. A Polícia Federal foi acionada. A mídia ficou sabendo e noticiou. Autoridades do governo e do setor privado entrevistaram os atletas, perguntando se queriam permanecer no Brasil. Eles repetiam que apenas queriam voltar a Cuba, para suas famílias. Um representante da Organização dos Advogados do Brasil pediu para falar a sós com os atletas. Na saída, relatou aos jornalistas que, de fato, eles apenas queriam voltar para seu país natal. Diante do fato, o governo brasileiro não teve outra alternativa senão comunicar o governo cubano que, imediatamente enviou um avião para buscar seus concidadãos. Os atletas foram punidos em Cuba? Talvez. Ficaram fora da seleção. A mídia queria o quê? Os caras abandonaram uma competição no meio! Queriam que recebessem medalha? Não foram presos nem torturados nem nada. Apenas ficaram de fora de competições internacionais. É uma questão tão lógica que chega a ser constrangedor ter que explicar. O atletismo cubano é, reconhecidamente, um dos mais competentes do mundo. Isso se consegue com disciplina e amor pela bandeira de seu país.
Lembro que, semanas depois do episódio, Jô Soares repetia-o, indignado. Até que chamou o ministro para uma entrevista, e Tarso Genro explicou tudo direitinho. Genro informou que qualquer atleta ou cidadão cubano que pedir asilo ao Brasil, recebe-o imediatamente, e que, inclusive, no mesmo Pan 2007, um outro atleta pedira e recebera asilo. Mas não foi, decididamente o caso dos pugilistas. Eles queriam voltar à Cuba. Tinham esposas, amigos e filhas lá. É tão difícil entender isso? Se minha mulher estivesse. sei lá, na Coréia do Norte, e eu fosse um opositor do regime, mesmo assim eu voltaria, para ficar com ela. Jô aceitou e admitiu que havia se informado erradamente. E agora, quase dois anos depois, o Globo retoma a história, dando a entender que os dois foram deportados contra a sua vontade. Assim é demais. Porque essa campanha sistemática de desinformação?
3) Por fim, o Alberto Dines, tentando dar uma mordidinha banguela na Carta Capital, apresenta uns números sobre o percentual de anúncios de estatais na revista. Ele comentava a entrevista de Lula para a Piauí, na qual Mario Conti pergunta porque o governo anuncia em revistas como Caros Amigos e Carta Capital? Lula respondera que há critérios técnicos e o governo anuncia em todas as revistas, de acordo com a circulação de cada uma. Se o percentual de anúncios de estatais na Carta Capital é maior é porque a revista tem poucos anunciantes privados, os quais, por razões que não entendo, ou me recuso a entender, preferem anunciar em publicações repugnantemente venais e corruptas e reacionárias, como Veja, ou enfadonhamente elitistas e imaturas, como a própria Piauí, do que expor seu produto e serviços na melhor e mais honesta revista brasileira, a Carta Capital. De qualquer forma, mesmo que houvesse alguma preferência do governo Lula pela Carta Capital, achei a atitude de Dines traiçoeira, mesquinha e alienada, já que a revista é crucial para manter um mínimo de pluralidade política na mídia nacional. Dines poderia, muito bem, ter a dignidade de considerar a importância de Mino Carta para a história da imprensa brasileira e não agir como um invejosinho babaca.
4) Vamos ver o que os paladinos pela liberdade de imprensa falarão sobre a demissão de Nassif da TV Cultura, dominada por Serra. Provavelmente nada. Mas espero que, no silêncio de suas consciências, os jornalistas desse Brasil reflitam bem sobre o caso. É por essas e outras que vejo a profissão de jornalista mais do que com descrédito. Já ultrapassou isso. Hoje vejo com uma quase repugnância. Por que um zelador, um professor, um operário, um funcionário público, tem a sua liberdade de opinião política. O jornalista não. Ele é obrigado, por sua profissão, a vender a sua opinião, a sua consciência, justamente aquilo que ele tem de mais precioso.
15 de janeiro de 2009
Desinformações
Tweet Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no XCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Gostou deste artigo? Então assine nosso Feed.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Já não é hora já da blogesfera brasileira reunir esforços para criar o equivalente do MediaMatters? Um espaço como o "Donos da Mídia", mas com constantes updates da montanha inesgotável de mentiras do PiG (até um dia talvez ser lançado em livro)? Algo que mesmo os blogs que discordam venham a contribuir no portal com o que concordam sem dúvida. Dar uma voz coerente, elegante e simples para a oposição da oposição. Escancarar a espionagem da privataria PSDB-"Suína" (o coração SP: finge ter o IDH da Suíça com a força econômica da China) que é o "PiG", e poderia vir a se conectar com a TV Brasil, ou a telesur etc. O maior pecado atual dos ótimos blogs (como este) é a gigante sensação ilusória de isolamento*, de que nossa narrativa não tem megafone, ou que tais opiniões é algo aberrante e só a pessoa (e raros outros) os tem.
Fazer de forma verdadeira o que o título mentiroso "Observatório da Imprensa" vende (mas organizado, belo, conciso, no ponto -- vide algo como ThinkProgress por exemplo).
*(os barões brasileiros conseguiram o que a mídia privada venezuelana não conseguiu: freou o senso de união espontânea. Como pessoas sem comunicação e representação nas favelas e pontos rurais da Venezuela conseguiram se organizar, reunir, compartilhar pontos de vistas e dar apoio mútuo em força coletiva é ainda incompreensível. Mas é um modelo a se admirar e obter esperança).
Amigo Miguel, há uma explicação para isso: eleições 2010, a campanha contra os possíveis sucessores apoiados por Lula começou a tomar dimenções mais ferrenhas, é daqui pra pior.
Abraços.
Outro aspecto que ainda não vi ninguém comentar é que a justiça italiana, especialmente na década de 1970, ficou conhecida internacionalmente por seus julgamentos políticos obscuros, veja-se o caso mais comentado do Antonio Negri e não me lembro quando mas o lance do assassinato do Pasolini.
Abraço,
Daniel.
Aliás,
só pra exemplificar, é interessante essa carta de Deleuze sobre o julgamento de Antonio Negri em 1979.
http://74.125.47.132/search?q=cache:CqmtXqTLahMJ:br.geocities.com/polis_contemp/carta_juizes.pdf+carta+deleuze+prisao+de+negri&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br
Abraço,
Daniel.
Prezado Miguel,
Vc tem números da economia americana, especialmente do Varejo neste último trimestre do ano?, ouvi que o varejo caiu 2%, é verdade?
Ouvi, também que os bancos estão retomando o financiamento de imóveis.
Será que a crise é tudo isso?
Cada vez mais acredito, que existe sim uma crise. Isto é fato.
Mas que ela é ampliada nos nossos jornais, revistas, e emissoras de TV.
E como já foi dito, em outro comentário as eleições estão chegando, e eles não querem a continuidade deste governo.
oi joão pereira, a crise nos eua é grave mas é preciso atentar para os seguintes pontos:
1) A renda per capita deles ainda é altíssima, com crise e tudo. Ou seja, ainda tem poder aquisitivo para importar do Brasil, cujos produtos exportados para os EUA, aliás, tem preço baixo e são indispensáveis (café, aço, carne, petróleo) e insubstituíveis (nenhum outro país pode substituir o Brasil em fornecimento de café e carne, por exemplo. A Argentina tem muita carne, mas não o suficiente).
2) O desemprego nos EUA, mesmo tendo aumentado, ainda é muito menor do que o desemprego no Brasil.
3) A infra-estrutura americana é incomparavelmente superior a de qualquer outro país. Enquanto aqui ainda estamos tentando reformar nossas estradas, eles têm ferrovias, estradas, pontes, portos e aeroportos fabulosos.
4) Os EUA acabaram de eleger um negro democrata, com posições historicamente de esquerda, o que por si já valeu esta crise.
5) Pelas razões citadas acima, o Brasil não deverá ser profundamente afetado pela crise nos EUA. Até porque acredito que os EUA superará esta crise rapidamente.
perfeito e obrigado.
Mas a grande mídia adora "vender" crise, crise e mais crise e apavora o brasileiro
Ontem, 18/01, foi a vez do fantástico(?) (des)informar para os alienados que ainda Veem Globo, que o desemprego em massa começou, que a crise pegou o Brasil inapelávemente e que todo mundo vai perder seus empregos por ter votado no iletrado Presidente Lula e que apenas Zé Serra, "o preparado", terá condições de reverter este quadro gravíssimo de crise que se instalou no nosso país, por culpa do PT. Repugnante.
Postar um comentário