Por João Villaverde
Existe um processo pouco percebido sendo desenvolvido aos poucos no Brasil e nos países emergentes semelhantes. Não é nada formal ou mesmo um pacto entre elites dominantes, mas um jogo que estabelece vencedores (os mesmos de sempre e alguns novos jogadores) e esconde dos perdedores a grande derrota. Podemos estar diante de um modelo intermediário entre uma nova dominação ou a restituição da hegemonia clássica.
Explico.
As exportações brasileiras estão diminuindo em volume há anos, pelo efeito do real valorizado (quando Lula assumiu o dólar valia R$ 3,80; antes da crise chegou a R$ 1,55). Mas o saldo comercial não parava de crescer graças a um motor paralelo: o aumento dos preços dos produtos vendidos ao exterior. Quer dizer, vendia-se menos quantidade, mas as mercadorias valiam mais.
Estavam mais caras graças a nossa produção de bens industrializados de maior valor agregado? Não, embora tenhamos nos desenvolvido fortemente em vários setores. Mas nada que alterasse nossa composição exportadora. As mercadorias mais vendidas continuaram sendo os produtos primários de sempre: grãos e minérios. Commodities, em geral. Por que elas aumentavam de preços? Graças a enorme e crescente demanda chinesa.
O desenvolvimento chinês dos últimos trinta anos produziu uma economia fortemente urbana, com moeda desvalorizada (o que incentiva as exportações, uma vez que com a mesma quantidade de dólares recebidos pela venda se consegue maior quantidade de moeda nacional) e mão-de-obra barata, sem direitos trabalhistas e impostos baixos. O modelo era simples: importa-se produtos básicos, industrializa internamente e reverte para exportação. Os dólares entram e enchem as reservas. Essas são aplicadas nos Estados Unidos, ajudando as famílias americanas a se endividarem e adquirirem mais e mais produtos chineses.
A crise financeira americana alterou profundamente os termos desse modelo. Com a falência de bancos, o crédito secou. Sem crédito, as famílias pararam de rolar suas dívidas - asfixiando os bancos ainda mais - e pararam de consumir. No ano passado, 25 bancos quebraram. Outros estão na iminência de quebrar e os grandes bancos estão recebendo aportes bilionários do governo para resistirem. A fanfarra baseada na crença do crescimento eterno do mercado imobiliário foi enorme. Os bancos não param de falir e estão entrando em colapso com mais rapidez. Na última sexta-feira, dois bancos faliram (o National Bank of Commerce, de Illinois, e o Bank of Clark County, de Washington) antes de qualquer tipo de ação do governo - a regulação foi tão afrouxada nas últimas décadas que o governo não tinha nem informações.
A previsão oficial é de outros 20 bancos vão falir, apenas nos primeiros três meses de 2009.
Com isso, o fluxo de dólares para a China diminuiu e tende a diminuir ainda mais. Os países da União Européia não são válvula de escape: a recessão é forte por lá também.
A grande diversificação comercial do governo Lula foi crucial para agüentar o tranco inicial da crise mundial. A maior parte das exportações de produtos de alto valor agregado são direcionadas para nossos vizinhos latinos - o comércio entre países da América Latina aumentou enormemente desde 2003.
Ainda assim, a maior parte do saldo comercial é razão da venda de commodities para os países industrializados. Dentre eles, nosso maior comprador é a China. Isso não mudou. Intensificou-se apenas. Com o Chile aconteceu a mesma coisa. Desde 2003, a produção industrial se diversificou, aumentando exportações e importações com os vizinhos. Mas praticamente 80% da entrada de dólares é oriunda do cobre, uma commodity.
Com a crise financeira internacional destruindo bancos dos países desenvolvidos, o crédito externo travou. Com isso, muitas linhas de financiamento de exportações brasileiras foram fechadas. Ao mesmo tempo, os bancos nacionais também pararam de conceder empréstimos (ou concedem a taxas absurdas, o que equivale a não emprestar). O financiamento, nos últimos dias, tem-se limitado às linhas especiais criadas pelo governo em dezembro. Mesmo o real mais desvalorizado não compensa, uma vez que a própria demanda interna está mais enfraquecida – de novo, efeito da escassez de crédito.
Esse é o panorama de como estamos, de como estão as coisas em janeiro de 2009, ainda que em compasso de espera para as primeiras medidas de Obama à frente dos Estados Unidos. O governo Obama é crucial, mas não agora. Antes é preciso preciso perceber o que há pela frente para depois discutir Obama, China e o resto do mundo (Brasil incluso) no meio disso.
O que importa é perceber a encruzilhada que o momento coloca à frente do Brasil e dos países emergentes de condições semelhantes.
Para manter as exportações fortes – o que é de interesse brasileiro para manter a entrada dos dólares necessários para honrar os compromissos externos, uma vez que nossa moeda não é conversível – o Brasil precisa que a China não pare. A maior parte de nossas exportações, como já se viu, refere-se a produtos básicos. A produção das commodities é relegada ao grande capital do agronegócio. Mas boa parte dos mercados importadores dos bens industriais chineses – os países ricos – estão em recessão. A China deve realocar essa produção para seu próprio mercado interno e para países como o Brasil: abertos, com renda mínima e com grande mercado interno.
Com as famílias americanas cortando seu consumo e a Europa deixando de ser uma alternativa, tudo o que os chineses querem é um Brasil importador. Com a demanda americana e européia em baixa também para as commodities brasileiras, tudo o que o Brasil quer é uma China importadora.
Ou seja, incentiva-se (de maneira indireta, é claro) a China para que ela continue comprando nossos bens primários, que depois serão remetidos de volta para cá sob a forma de produtos industriais.
Dessa maneira, mantendo aumentos do salário mínimo e de programas de transferência de renda (simplificando: para as classes baixas, Bolsa Família; para classes altas, superávit primário), os bancos ficam sem pressa para retomar o crédito, podendo manter o rigor seletivo e o lucro com títulos do Tesouro, e o Banco Central fica livre de se desgastar muito com o combate à inflação. Tanto os bancos quanto o BC, ajudados pelos produtos chineses que chegam com preços baixos e em grande quantidade. A renda mínima promove o consumo dos bens chineses sem necessitar do crédito bancário. A renda elevada mantém a produção dos bens primários que são levados à China.
O modelo desenhado é intermediário de uma troca de modelos, proporcionada pela conjuntura. Podemos entrar de cabeça no modelo sino-cêntrico ou podemos continuar no modelo anterior, vigente a pouco, de dominação americana.
Obama tem a chance única de fazer prevalecer o jogo como todos os participantes (vencedores e perdedores) conhecem: ele pode restituir a hegemonia americana por meio das finanças e do comércio. A hegemonia cultural, como sempre, é conseqüência da dominação econômica.
Com isso, mantém-se o processo de dependência externa, histórico e crônico ao mesmo tempo. O país continua colonizado, trocando ou não de colonizador.
22 de janeiro de 2009
Encruzilhada histórica
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João Villaverde
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quinta-feira, janeiro 22, 2009
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Grande João, fiz uma tabela, com dados oficiais, para ilustrar o comentário que irei fazer agora. Está aqui:
http://spreadsheets.google.com/pub?key=puNwwl3xBN-KknbEkPshJXg
Bem, o que tenho a dizer é o seguinte. A vida não é fácil, irmão. Não é fácil para o Brasil, nem para os EUA, nem para a Palestina. Se os brasileiros, tanto da iniciativa privada, quando do governo, tanto coletiva quanto individualmente, não formos criativos e empreendores, o Brasil ficará para trás, isso é certo. O que não concordo, nesse seu artigo, é excluir o fator mistério de uma projeção econômica, que inclui justamente a criatividade e o empreendedorismo. Ou seja, o fator surpresa. Quem sabe o que os americanos, ou chineses, ou brasileiros farão daqui para frente. Que novas descobertas científicas mudarão as relações internacionais? Mas atendo-se somente à questão do comércio internacional, analise a tabela que publiquei e teremos alguns dados aos quais você não deu a devida atenção. Em primeiro lugar, você não deu destaque ao seguinte elemento, que é novidade. As exportações brasileiras para os países latino-americanos registraram um salto extraordinário, e elas são compostas, essencialmente, de produtos industrializados. Argentina não compra soja ou minério de ferro do Brasil, e sim peças de carro, tratores, reatores, e produtos com alto valor agregado.
Também acho que você subestima o potencial econômico de alguns produtos primários, que são primários, sim, mas tem um alto valor agregado, sobretudo a carne. As exportações brasileiras de carne cresceram quase 900% em 10 anos.
Concordo plenamente com você que temos que melhorar a composição de nossas exportações. Mas não é fácil. Tínhamos que ter começado a fazer isso há 50 anos, quando os monopólios eram mais débeis e os mercados, por incrível que pareça, mais abertos. A Europa, por exemplo, é terrivelmente fechada a produtos industrializados brasileiros. Tanto que o valor médio de nossas exportações para lá é o mais baixo de todos. Por isso nossos "hermanos" são tão importantes: são os únicos que vem comprando, cada vez mais, nossos produtos industrializados. Creio que nosso caminho é por aí, crescer entre os emergentes. A China também é fechadona, mas o Brasil pode crescer muito junto aos países africanos, árabes e, como já dito, latinos. A China, de fato, é sagaz e economicamente imperialista, mas tem problemas gravíssimos, sobretudo políticos, e nós, brasileiros, sempre podemos dar um "jeitinho" de lucrar e se desenvolver com a globalização. Mas um país com a vastidão de recursos naturais como o Brasil não pode ter o pudor de lucrar com a exportação de matérias-primas. Se China, EUA e Europa quiserem apenas comprar matérias-primas do Brasil, também não será o fim do mundo. Vendemos produtos industrializados para nossos hermanos e em nosso gigante mercado interno. Enfim, como dizia o Chico, a gente vai levando...
Adorei o texto do João por ser analítico, mas o comentário do Miguel é bem pertinente.
O texto é frio quase matemático, o comentario do Miguel é filosófico.
A paixão pelo Obama aqui nos EUA continua a toda, vamos ver quanto tempo dura.
Ano passado nesta mesma época a cidade de Orlando na FL, estava lotada de americanos e turistas internacionais, este ano me senti na Mooca, só tem brasileiro, muita excursão de MG, do ES, e do NE.
Estive em NY, não existe euforia existe uma vontade de acreditar que vai dar certo, mas não é otimismo, é desejo.
A arrogancia do americano diminuiu um pouco, a realidade começou bater a porta deles.
Só os juros das dívidas externas do 3º mundo não pagará seus luxos.
Não deixo de sentir uma morbida alegria por isso.
Quero estar vivo quando eles souberem onde é o Brasil, e quem somos.
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