Por João Villaverde
Desde que estourou a guerra, com as forças de Israel bombardeando Gaza em 27 de dezembro, muito se falou de 1967, 1973 e 2006, datas históricas e importantes para compreender o conflito entre israelenses e palestinos. Certamente são. Mas a história foi, em grande parte, mal contada. Praticamente não se falou de outra data histórica: 1948. Foi nesse ano que, horrorizados pelo genocídio promovido pelos alemães nazistas contra os judeus ao longo dos anos 30 e 40, o Ocidente criou o Estado de Israel. A criação ignorou qualquer coerência geográfica ou ética: Israel foi cravado no meio da Palestina, agora dividida. Mais de 750 mil palestinos foram expulsos de suas terras para dar espaço à Israel.
As diferenças e incompreensões instauraram-se aí.
A partir de então, 1948, Israel desenvolveu forte relações com os Estados Unidos - financeira e religiosa - que permitiu levantar um Estado grande e um dos maiores exércitos do mundo. A guerra dos seis dias, em 1967, gerou o primeiro grande debate internacional. Aproveitando de seus serviços de inteligência, Israel antecipou um ataque coordenado pelo Egito, Síria e Jordânia, destruindo toda a força armada dos três países. Para evitar novas surpresas, Israel passou ele mesmo a invadir o território alheio, levando milhares de famílias israelenses para as terras ocupadas. Israel ocupou todo o Sinai, ao norte, a Faixa de Gaza, ao sul, Jerusalém oriental e parte da Jordânia, espremendo milhões de palestinos - já há 19 anos sem pátria - na Jordânia.
Em 1948 foram as forças internacionais que ocuparam territórios palestinos para dar espaço a Israel. Em 1967, foi a vez de Israel sozinho ocupar territórios palestinos.
O grande debate que se formou se deu graças a justificativa de guerra: Israel antecipou um ataque coordenado por uma frente árabe, constituída pela Síria, Egito e Jordânia, mas com apoio também do Iraque, do Kuwait, da Arábia Saudita, da Argélia e do Sudão.
Sem querer entrar nos méritos das justificativas de guerra. Mas ali nasceu um ódio visceral entre judeus e palestinos e o mundo árabe. Primeiro porque Israel teve as justificativas de antecipar um ataque. Segundo porque o ataque, para a frente árabe, justificava-se pela implantação estranha de Israel em 1948, e terceiro que a partir dali seguiu-se a ocupação ilegal de território palestino pelos colonos israelenses.
O que incitou um acirramento no conflito foi uma questão secular, pouco lembrada. A década de 1970 para o mundo muçulmano marcou o início do XIV século da Hégira, período do renascimento, purificação e fortalecimento do Islã, tal como ocorre no início de cada século. A partir dos anos 70 iniciou-se um processo de revoluções culturais e religiosas pelo mundo islâmico, renascendo um franco processo de fundamentalismo religioso, em muito apoiado pelo fracasso promovido pela globalização econômica na região.
As elites do mundo muçulmano, como as nossas latino-americanas, entraram de cabeça na defesa da globalização. Nos anos 70 e 80 nascia e era desenvolvido o batido discurso de "inserir o país na modernidade". O mundo muçulmano a "modernidade" era um pouco diferente: ocupava-se o controle do Estado, que passava a ser estratégico para ditar os rumos da sociedade moderna, capitalista e global. Iniciou-se uma dialética crescente entre o fortalecimento do Estado-nação e do fundamentalismo islâmico.
Islã, em árabe, significa submissão, e um muçulmano é alguém que se submeteu à vontade de Alá. Há a lei divina, o sharia (contituída pelo Corão e os Hadiths), que está relacionada ao verbo shara'a, isto é, caminhar em direção a uma fonte. Para a maioria dos muçulmanos, a haria não representa uma lei rígida, mas uma referência para se caminhar em direção a Deus, podendo ser adaptada pelas circunstâncias históricas do período vivido.
Ao contrário dessa abertura permitida pelo Islã, o fundamentalismo islâmico implica a fusão de sharia e fiqh, reconstruindo a história do Islã para demonstrar a eterna submissão do Estado à religião. Portanto, para um fundamentalista, o vínculo fundamental não é watan (terra natal), mas sim umma, ou comunidade de fiéis, em que todos são iguais em sua submissão perante Alá, conforme explicou o sociólogo Manuel Castells no segundo volume de seu "Era da Informação".
Ou seja, a confraternização universal entre islãmicos transcende o estado-nação, que passa a ser encarado como fonte de cisão entre fiéis. Inicia-se um conflito cada vez mais radical no mundo árabe: aqueles seguidores da sharia e aqueles seguidores do discurso nacionalista do Estado-nação. Conforme explica o estudioso islãmico Bassam Tibi, "o Estado-nação é um elemento estranho e praticamente imposto. A cultura política do nacionalismo secular não só é novidade no Oriente Médio, como também mantém-se meramente na superfície das sociedades envolvidas".
A modernização econômica promovida pelos Estados no Oriente Médio durante os anos 70 e 80 foi fracassada, uma vez que suas economias não conseguiram entrar no jogo pesado da globalização, ou seja, concorrência comercial e revolução tecnológica. Os países foram inundados por importados, que aumentou o desemprego e descaracterizou as relações. A disparidade campo-cidade cresceu horrores. Ao mesmo tempo, toda uma geração de jovens formados nas décadas de 50 e 60 - quando os países cresceram muito - se viu sem oportunidades e perdidas em discursos ocidentais de globalização, que não alcançaram os objetivos vendidos. A crise de legitimidade do estado-nação foi resultado de sua corrupção generalizada, ineficiência, dependência de potências estrangeiras e, no Oriente Médio, de repetidas humilhações no âmbito militar diante de Israel, seguidas de um processo de acomodação com o inimigo sionista.
Como escreveu Farhad Khosrokhavar, famoso sociólgo islâmico, "quando o projeto de formação de indivíduos que participem ativamente da modernidade revela-se absurdo na experiência real da vida cotidiana, a violência torna-se a única forma de auto-afirmação do novo sujeito. A exclusão da modernidade adquire um significado religioso: deste modo, a auto-imolação passa a ser a forma de luta contra a exclusão".
O Hamas, em Gaza, segue exatamente esse pensamento. O Hizbollah, no Líbano, também. Esses movimentos - e muitos outros - tem todo um contexto histórico que explica sua existência. Não justificam seus ataques, mas compreendem suas ações assistencialistas - o Hamas foi eleito principalmente por levantar escolas e hospitais - e também seu ódio.
O massacre irracional e criminoso de Israel contra os palestinos em Gaza tem objetivos políticos claros: haverá eleição para o cargo de primeiro-ministro logo mais, em fevereiro. Mais que isso: aproveitaram de uma justificativa convincente entre seus pares - "os terroristas do Hamas não param de lançar mísseis contra nós" - para aniquilar o que resta de Gaza.
É importante notar o seguinte: Israel deixou totalmente Gaza em 2005. O que se seguiu na região foi justamente o conflito religioso, explicado acima, exemplificado pela disputa entre Fatah (apoiado pelos EUA e por Israel) e Hamas. O Hamas foi eleito, levou a maioria, e uma guerra entre palestinos se iniciou. Os membros do Fatah foram todos expulsos de Gaza, indo se refugiar no gueto palestino na Jordânia, apelidado de Cisjordânia (conhecido por West Bank por lá). Quando Israel viu o Hamas soberano em Gaza, logo ordenou o fechamento das fronteiras, iniciando um bloqueio econômico de alimentos, bebida e energia. Gaza estava literalmente enjaulada.
A situação de fome e miséria explodiu rapidamente. Ainda assim foi assinado um cessar-fogo de seis meses entre o Hamas e Israel, em julho do ano passado. Era um cessar-fogo ridículo, convenhamos. O Hamas se dispunha a parar de lançar mísseis caseiros contra o sul de Israel, enquanto Israel praticamente não se mexeu para terminar o embargo. Foi permitida pouca entrada de ajuda humanitária. Resultado: foi um péssimo negócio para a população de Gaza, uma vez que não mudou em nada a péssima condição de vida, sem comida, água, remédios e combustível.
Como se não bastasse, Israel rompeu o cessar-fogo, com um ataque rápido e letal, que matou sete palestinos. O ataque foi estratégico: ocorreu no dia 04 de novembro, dia das eleições americanas, que escolheram o democrata Barack Obama como novo presidente. Isso foi pouquíssimo lembrado. (Ver texto no Biscoito Fino e a Massa sobre isso).
Mesmo assim o Hamas não se mexeu. Terminado o acordo, em 19 de dezembro, retomou o lançamento de mísseis. E deu cabo para a justificativa de Israel.
Já são mais de 800 palestinos assassinados desde o início dos bombardeios israelenses.
12 de janeiro de 2009
Israel e os fundamentalistas islâmicos
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# Escrito por
João Villaverde
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segunda-feira, janeiro 12, 2009
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Prezado João Villaverde,
poucas vezes tive oportunidade e ler um texto que aprofundasse tanto.Nunca soube que( conforme seu texto )
"Islã, em árabe, significa submissão, e um muçulmano é alguém que se submeteu à vontade de Alá".
Textos como este ajudam a entender um pouco da cultura local.
Excelente
João, não foi após 1967 que brotou o ódio entre palestinos e judeus.Foi antes até da criação de Israel quando incentivados pelo movimento sionista patrocinado pelos aliados da 2ª Guerra judeus principalmente da Europa começaram a imigrar para a região adquirindo terras com recursos de um fundo internacional.Nessa época 90% da população da região era palestina.Com a fundação do estado judeu teve início a expulsão dos palestinos através de massacres de aldeias inteiras.Organizações terroristas como Haganá e Stern encarregaram-se da "limpeza".Como você lembrou 750 mil palestinos foram obrigados a abandonar suas terras.Essas terras foram dadas a colonos judeus.A própria ONU reconhece o direito de retorno ou indenização expresso em resolução nunca acatada por Israel.Aliás é praxe do estado judeu fazer vistas grossas às resoluções que lhe são contrárias,sempre com o respaldo dos EUA.Se há estado religioso no planeta ele se chama Israel;qualquer cidadão não judeu(20% do total)é considerado de 2ª classe.
Oi João, parabéns pelo artigo. Eu andei meio amargo sobre a questão palestina, mas você "salvou o blog" nesse quesito. Obrigado e um grande abraço.
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