15 de março de 2010

Os acacianismos neoliberais de José Serra

Não fosse o autor um perigoso aspirante à vaga de presidente da república do meu país, eu não daria a mínima atenção a esse artigo acaciano publicado hoje no Estado. Para começar, o título ("Prisioneiros da democracia") e a conclusão ("Sejamos todos cativos da democracia. É a única prisão que presta seu tributo à liberdade") são de um mau gosto terrível. Não somos prisioneiros nem cativos da democracia. A democracia não é nenhuma prisão. Muito sintomático, por outro lado, a escolha dessas imagens. Revela uma alma atormentada, autoritária e pervertida. O ghost-writer conseguiu interpretar bem o que se passa no intimo do chefe.

Democracia é o ar livre, a praça cheia de povo, a alegria das festas populares, o grito insano de uma criança recebendo um presente, a juventude se divertindo. Tem de ser uma pessoa muito doente para associar democracia e prisão.

Claro que se levarmos para o relativismo, tudo é prisão. O amor é uma doce prisão. A infância é uma prisão. A democracia é uma prisão. Eu entendo o que Serra quis dizer. Não foi maldade, naturalmente. Foi mau gosto, só isso.

Nem é disso que eu queria falar.

O que me impressionou mesmo foi o aspecto pomposo e vazio do texto. E partindo de quem se esperava tivesse algo de concreto a propor ao Brasil. Não, em vez disso, Serra nos empurra um discurso burocrático de Rottary Club! Desses que a gente finge ouvir enquanto entorna champagne num evento insuportavelmente chato, pensando que nem o néctar dos deuses compensaria o tédio mortal daqueles momentos. O discurso dura dez minutos, mas parece se prolongar por horas a fio. Você olha para os lados e vê somente mulheres feias e homens sisudos. Então você se levanta para ir ao banheiro, sonhando encontrar, escondida por trás de uma daquelas portas misteriosas, fumando um baseado com lábios carnudos, a filha subversiva e gostosa de alguma socialite. Será nossa vingança!

Serra conseguiu, enfim, realizar mais uma proeza. Publicou um enorme artigo em que não diz nada. Depois de declarar, certa feita, que é "contra chacina", agora afirma, no auge da democracia brasileira, que é favor da democracia. Parece alguém que adentre o maracanã lotado de flamenguistas, e queira chamar a atenção gritando para todo mundo ouvir:

- Ei! Eu sou flamengo também! Olhem para mim!

Nós já ficamos especialistas, todavia, em interpretar essas manifestações ultra pós-modernas. O certo seria que o Estadão publicasse, ao lado do artigo de Serra, um outro texto, explicativo, discorrendo sobre seu significado. É assim que se faz com algumas obras contemporâneas. A gente lê a explicação. Depois vê as obras.

Como o Estadão não o fez, façamo-lo agora. Os mais antigos manuais de redação nos dizem que todo texto deve ter um objetivo. Qual o objetivo, portanto, deste sonolento artigo de Serra, que tanto nos lembra os textos de seu correligionário, o doutor Fernando Henrique Cardoso? Com a diferença de que os textos de FHC são gordurosos. Os de Serra são magros (ou nem tanto). Qual o objetivo? Apenas comemorar os 25 anos da nova fase democrática? Ótimo. Objetivo nobre. Mas não seria uma oportunidade para Serra dizer ao povo brasileiro o que pensa fazer em seu governo? Mexeria no câmbio, conforme prometeu o presidente do seu partido? Faria alguma mudança nos programas sociais? Faria uma grande redução no contingente do funcionalismo público? Forçaria a adoção do sistema de cooperativas para a área médica e educacional?

O que me impressiona nesses artigos tucanos é sua retórica oca. O texto inicia assim: "O Brasil comemora hoje os 25 anos da Nova República. Isso quer dizer que celebra um quarto de século (...)" Reparem que Serra nos informa, brilhantemente, que 25 anos correspondem a um quarto de século... Realmente, trata-se de uma informação fundamental para se entender o significado de democracia.

Mas não é nada disso que eu quero falar.

Em 1964, a grande imprensa noticiava a vitória dos militares como um triunfo democrático. Os generais e os golpistas eram "os democratas que dominavam a nação".

Está claro, portanto, que a democracia, enquanto apenas uma palavra, pertence ao dono da palavra. Se os jornais diziam que o golpe de Estado que derrubou o presidente eleito João Goulart era um triunfo democrático, então era assim. Ponto final.

Ah, Deus! Não é isso ainda.

O que eu quero dizer é que esse artigo de Serra é uma xaropada. Uma empulhação reacionária. Qual o principal conceito que ele tenta nos vender? Esse trecho diz tudo:

Assim, repudiemos a simples sugestão de que menos democracia pode, em certo sentido, implicar mais justiça social. Trata-se apenas de uma fantasia de espíritos totalitários.

Quem sugeriu isso? À parte as firulas irritantes, como dizer "simples sugestão" em vez de "sugestão", e enfiar a expressão "em certo sentido" onde não precisava, vícios tipicamente tucanóides de linguagem, trata-se de mais um desses ataques enigmáticos de difícil interpretação.

Difícil, mas não impossível. Às vezes é melhor nem fazê-lo, porque a interpretação causa arrepios e mal estar. Serra desvaloriza a luta pela justiça social enquanto luta democrática. Seu texto ambíguo, cinzento, insinua que os espíritos que lutam por justiça social são "totalitários". Por contraste, quem seriam os democratas? Os almofadinhas do Instituto Millenium?

De qualquer forma, é lamentável essa manifestação de arrogância conceitual, outro vício tucano. Democracia é conceito que remete à Antiguidade, e já passou pelas mais variadas formas de governo. Não é nenhuma prisão. É uma chave para abrir as portas que o egoismo e a brutalidade social estão sempre trancando. Democracia não é esse valetudo corporativo que a direita tenta há décadas nos impingir. Democracia é o regime onde o poder emana do povo, e se o povo, através de seus representantes, decidir que é preciso novos regulamentos para a mídia, então assim será, e será perfeitamente democrático.

Outra grande empulhação é tratar plebiscitos como antidemocráticos. A Constituição Brasileira prevê o uso de plebiscitos como um instrumento legítimo de consulta popular. Foi um crime hediondo contra a democracia o fato de Fernando Henrique Cardoso não ter submetido à consulta popular a mudança que pretendia (e fez) fazer na legislação eleitoral, instituindo a reeleição. É absolutamente hipócrita que a imprensa brasileira agora trate o uso de plebiscitos na América Latina como antidemocráticos.

Os subintelectuais da mídia não são proprietários do conceito de democracia, o que seria, aliás, uma ridícula contradição. A democracia é um conceito aberto, em evolução, complexo. Não é um estatuto do Millenium. Afinal, a moça subversiva que fuma um baseado atrás da porta, enquanto Serra discursa no Rottary Club, talvez tenha uma idéia de democracia mais rica, desenvolvida, criativa, mais humana enfim, do que a xaropada neoliberal e conservadora do governador de São Paulo.

(Pintura de Wesley Duke Lee)

8 comentarios

jozahfa disse...

Eu comecei a ler o texto, Miguel, e desisti em seguida ao parágrafo que você selecionou. Me pareceu que ele havia chamado Lula de totalitário. Achei maçante.

Jorge Santos disse...

Nossa Miguel, sua análise foi crucial! Além de você, poucos na Web demonstraram disposição para engulir esse angú em forma de artigo.

Confesso que esperava algum comentário do Nassif acerca desse espetacular convite à "prisão democrática" proposto pelo governador de São Paulo, José Serra.

O artigo é triste! O Serra encarnou o Professor Hariovaldo para redigir esse artigo. O cara não tem nada na cabeça.

Engajarte disse...

Será este artigo uma reação ao desgaste provocado pelo comício do Instituto Millênio?
Lembremos que o Serra tem firme apoio do tal Instituto para sua eleição e para atacar com todas as forças a candidatura da Dilma.
Terá o Serra virado as costas para os Millenaristas, os apóstolos do fim do mundo, os chama golpe, os que decidiram parar de jogar pelas regras do jogo?
Eita artigo da boca para fora, falta coerência, falta coração, um dia o homem se abraça com empresas de comunicação que tergiversam sobre ataque sistemático ao jogo democrático, no outro dia escreve um artigo na mesma mídia pedindo democracia, e vendo ameaça a democracia vindo das demandas por justiça social, he, he, no fim das contas a única coisa que o Serra apresenta é coerência.

Unknown disse...

Faz parte da tática suja de campanha, dele e seus apoiadores, passar a imagem de que Lula e Dilma são os comunas totalitários que vão transformar o Brasil em um estado sem liberdade.

Sujos.

reginaldo gadelha disse...

Ao Denis Fonseca.

Vc afirma em seu comentário que:
"o Serra passa a imagem de que lulla e dilmao são os comunas totalitários que vão transformar o Brasil em um Estado sem liberdade"

Não entendí isso no texto do Serra, e não sou PSDBista, sinceramente acho que vc exagerou, por má fé, ou por ideologia.
Mas que exagerou, exagerou.

Unknown disse...

A democracia de Serra se fez ver na USP...simples assim...

Gilmar disse...

Pra ter um blog que fale de política,a pessoa tem de ser imparcial.
Um blog como o seu não faz um eleitor refletir,pois a pessoa logo pensa esse é pucha-saco do pt,o mesmo se fosse do PSDB ou qualquer partido

Péssimo texto.

Anônimo disse...

Miguel simplesmente você conseguiu realmente traduzir o artigo do Serra. Se o discurso fosse ao vivo ele não ia ser explanado e sim soletrado paulatinamente por esses tucanos malditos.

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