(ainda do arquivo)
Sobre as diferenças entre esquerda e direita
Por Miguel do Rosário*
A crise do PT colocou em evidência os termos esquerda e direita. Esta afirma que o governo é de esquerda, e que a esquerda é incompetente e corrupta. A extrema-esquerda acusa a esquerda de ser direita; e a extrema-direita acusa a direita de ser esquerda. Enfim, há um caos babilônico; falam-se idiomas diferentes e ninguém se entende.
O cientista político "de esquerda", Emir Sader, e Valter Pomar, da "esquerda" do PT, dizem que a saída da crise está à esquerda. É também mais ou menos o que acreditam as forças ligadas aos movimentos sociais.
Reinaldo Azevedo, jornalista "de direita", editor da revista Primeira Leitura, afirma, ao contrário, que o cerne da crise está na própria esquerda. Denuncia a esquerda em suas próprias raízes: acusa Sartre de ser complacente com o stalinismo; cita os milhões de mortos sob regimes comunistas; ataca Fidel como torturador, homicida e tirano; ironiza o fato da esquerda ser associada a idéia do bem e do belo, quando a verdade, segundo ele, é bem outra...
No afã de fazer política, articulistas de ambos os lados agridem a filosofia e violentam a história. As estatísticas e os argumentos que a direita usa para atacar a esquerda foram colhidos nos arquivos da guerra fria. Em verdade, nem os comunistas foram santos, nem foram os monstros que se pinta. Da mesma forma, nem o capitalismo deixou de ser importante para a humanidade, nem por isso tem sido menos cruel, violento e genocida. Os acontecimentos históricos obedeceram às forças que lutavam em suas respectivas épocas. Se Stálin matou tanta gente, também foi ele quem venceu Hitler e fez a Rússia sair da época feudal e desenvolver uma poderosa indústria de base. Se Mao Tsé-Tung realizou uma revolução tão brutal, também foi ele quem libertou a China do jugo imperialista e impediu a grande nação chinesa de se tornar uma África, fato que tornaria o planeta, hoje, um lugar inabitável.
O capitalismo, por sua vez, também foi pintado com uma tinta tendenciosa por Marx e pelos comunistas que o seguiram, omitindo suas características progressistas e sua importância para o florescimento do sentimento de liberdade e para o surgimento da cultura, artes e filosofia.
Na verdade, após a queda do muro de Berlim e o fim dos regimes comunistas do leste europeu, houve uma tentativa, dentro das academias, de se acabar com essa suposta dualidade profunda do pensamento político mundial. Não deu certo. A necessidade, mãe suprema da linguagem, obrigou a sociedade a resgatar os antigos conceitos, que hoje voltaram a fazer parte do cotidiano das pessoas.
Há, decerto, muita gente que não se identifica nem com a esquerda nem com a direita. Consideram-se "independentes" e demonstram, inclusive, certa irritação com uma simplicação, a seu ver, grosseira das diferentes visões de mundo.
Essas pessoas, apesar de sua recusa, e mesmo à sua revelia, acabam por se identificar, mais cedo ou mais tarde, por afinidade intelectual ou afetiva, com algum tipo de agrupamento político.
Infere-se de tudo isso que os conceitos "direita" e "esquerda" ainda possuem peso ideológico e linguístico, e que a confusão em torno deles é resultado sobretudo da falta de estudos e debates sobre o que, na essência, eles significam.
O que significa "ser de esquerda"; o que significa "ser de direita"?
É importante lembrar que o debate em torno desses temas não é apenas um debate filosófico: é sobretudo político. Mesmo que procuremos, ao realizá-lo, sermos justos com a verdade histórica e coerentes filosoficamente, sempre haverá a interferência de nossa inclinação ideológica pessoal e da atmosfera social ambiente.
Por exemplo, o conceito "direita", no Brasil, tornou-se quase um xingamento. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos e Europa, onde políticos e segmentos sociais orgulham-se de sua inclinação ideológica conservadora, no Brasil e na América Latina em geral, o termo é associado historicamente às forças retrógradas que procuraram, de várias formas, manter o continente em constante atraso econômico, político e social. No caso do Brasil, a ditadura militar foi assumidamente um regime político de direita; e seu fracasso em todos os sentidos, mas sobretudo moral e político, selou a direita com um estigma que ainda perdurará por muitos anos.
Com a crise política do governo Lula, vemos uma tentativa de desmoralizar o próprio conceito de esquerda, e todas as idéias que giram a seu redor. Há uma espécie de revanchismo, depois da humilhação política imposta à jovem direita nascida das ruínas do governo militar.
Essa jovem direita, atualmente, rejubila-se com a crise. Uma nova geração de intelectuais conservadores, como Reinaldo Azevedo, na área política, e muitos outros, na esfera artística (cujo nome prefiro não citar), vem sendo recebida com fogos e festa pelas classes sociais mais abastadas que, desde o fim da ditadura, viam com bastante aflição o crescimento rápido e vigoroso das forças de "transformação" social representadas pela esquerda.
O medo que existia de Lula, desde a primeira vez em que ele tentou a presidência da república, em 1989, consistia justamente nisso: debilitada politicamente, destruída moralmente, a direita sabia (ou melhor, intuía, já que esse tipo de ação política é muito mais tocada pela intuição do que pela razão) que a perda do poder político poderia acarretar em mudanças profundamente nocivas a sua sobrevivência como classe social.
Os oito anos do governo FHC, porém, serviram para debilitar ainda mais a direita nacional. FHC representava uma elite transnacional interessada sobretudo na privatização das grandes estatais e na internacionalização da economia doméstica. Os danos provocados pelas políticas recessivas de FHC, somado ao monstruoso endividamento a que ele expôs o país, mostraram às próprias elites que a direita, pese toda sua arrogância, não sabia governar, além de não possuir confiabilidade na luta contra a corrupção.
Houve, então, um grande pacto político, entre parte do empresariado, movimentos sociais, partidos de esquerda e partidos dito "nacionalistas", para que Lula subisse a rampa e botasse ordem na casa.
Após dois anos e meio de governo, esse pacto esgotou-se. Os segmentos unidos temporariamente em razão das necessidades eleitorais fragmentam-se e começam a seguir direções opostas. A banda podre, fisiológica, a medusa de várias cabeças, uma delas representada por Roberto Jefferson, decide romper com o governo e, ameaçada de implosão política, deflagra uma crise política de enormes proporções. "É o mensalão!", denuncia Roberto Jefferson, sem apresentar provas, mas ciente de algumas irregularidades. Jefferson sabia que reuniria a seu favor, rapidamente, uma quantidade de forças intensamente concentrada, desde a derrota de Lula e a retração política registrada pelo PFL em 2004.
E então, eis a crise instalada. E eis que voltamos, nesse artigo, à discussão sobre o valor dos termos "esquerda" e "direita".
Não falemos de certas designações chulas, que tratam direitistas como "egoístas" e esquerdistas como "invejosos".
No entanto, é certo que há fatores psicológicos que influenciam os rumos ideológicos que tomam os indivíduos. A análise de todos esse fatos, respeitando a força e as razões de cada segmento, é fundamental para elevarmos o nível do debate político no país. Direitistas tem que respeitar esquerdistas, e esquerdistas têm que respeitar os direitistas. Desde que as instituições democráticas sejam firmes, haverá mais segurança de que, nem os direitisas "venderão" o país aos Estados Unidos, nem os esquerdistas convertarão o Brasil num apêndice gigante de Cuba.
Além disso, é interessante notar que esses dois grandes espectros ideológicos podem reunir objetivos em comum. O principal deles: elevar o poder aquisitivo da maioria pobre da população brasileira, reduzir o desemprego, estimular o crescimento econômico, melhorar o nível de instrução do povo, controlar melhor o desmatamento.
Entretanto sabemos que, se na teoria há essa concordância, na prática, os segmentos reacionários operam de maneira altamente nociva à realização de tais objetivos. Mas fiquemos, por enquanto, na teoria.
Vimos as semelhanças de objetivos entre direita e esquerda. E as diferenças? A direita prega o Estado mínimo, a privatização dos serviços públicos, a aceitação do papel subordinado da economia brasileira em relação ao primeiro mundo. Tudo isso, naturalmente, com o melhor dos objetivos: trazer desenvolvimento e reduzir o desemprego.
A esquerda prega o aumento dos serviços públicos e a não-aceitação de nenhum papel subordinado da economia brasileira.
Tanto as teses da direita como da esquerda acarretam problemas. A direita quer o Estado mínimo, mas a sociedade brasileira ainda não está preparada para isso. Oitenta ou noventa por cento da população brasileira não tem dinheiro para pagar escola particular para os filhos ou plano de saúde privado. Por outro lado, a tese da esquerda também é difícil de concretizar, o Estado está sobrecarregado e não é mais possível aumentar os impostos sobre a sociedade, que já são muito pesados.
Qual a solução?
Particularmente, suponho que a resposta está no meio termo, na ponderação entre o que é necessário e o que é possível.
O Brasil é grande demais, problemático demais, com uma descentralização natural, devido ao isolamento geográfico dos municípios. Os problemas, portanto, devem ser resolvidos em parte pelos governos federais, mas em grande parte por estados e municípios. Algumas leis relativas à transparência, à difusão via rádio e tv dos debates políticos entre vereadores, deputados estaduais e federais; o incentivo à participação política da população; são algumas das tendências progressistas que considero interessantes à saúde politica do país.
Esse artigo ja se estendeu demasiadamente. Em outra oportunidade, discorro mais sobre o assunto. Receio que não pude responder peremptoriamente à questão central que motivou o texto: a diferença entre esquerda e direita. Mas talvez a resposta não seja tão relevante quanto a necessidade de pensarmos formas de desenvolver o país e reduzir a situação de humilhação econômica vivida por grande parte da população brasileira.
8 de julho de 2007
Da série "Estudos para uma reflexão pós-crise"
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Miguel, acredito que teu arquivo continuará atual pelo mínimo mais cem anos em se tratando de esquerda e direita,ou até que se tenha maturidade suficiente para aderir democraticamente a uma corrente central na qual o ser humano seja mais valioso do que o capital.
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