27 de março de 2010
O cego e a dançarina em São Paulo
(As fotos acima são da manifestação dos professores de São Paulo realizada nesta sexta-feira 26/03. A primeira eu não sei de quem é. A segunda foto, com o professor segurando uma PM ferida, é de autoria de Rodrigo Coca, da Arena e Agência Estado, e já virou sucesso absoluto na blogosfera; Leandro Fortes escreveu um post belíssimo sobre ela. PS: Clayton de Souza, também da AE, e Rodrigo Coca tiraram fotos muito parecidas. PS2: Ops, parece que não era um professor... e sim um pm infiltrado à paisana. Acabou-se o romantismo.)
Tem esse trecho, logo no início do conto. "Não sei explanar melhor sobre isto porque aconteceu um fato que é mais voraz do que as palavras em pássaros. Um fato que exaure todas as possibilidades. Pois é um fato cruento". João Gilberto Noll, quando escreveu Cego e a Dançarina, jamais poderia imaginar que alguém usaria seu conto para compreender a brutalidade social em São Paulo. Mas as palavras, parafraseando-o, são pássaros enlouquecidos voando sob um sol anêmico. Quem é vivo, afinal, são os pássaros. Não o sol. São os homens, não é a cidade. Homens, cidadãos, professores. Muito fala-se em educação. Todos estão sempre falando em educação. Os editoriais batem na mesma tecla: educação. O governo fala sempre que investe mais e mais em educação. No entanto, quem fala nos professores? Quem é que experimenta a rotina diária de inocular na cabeça de crianças ignorantes e adolescentes rebeldes cinco mil anos de cultura ocidental?
O governo de São Paulo, em vez de aumentar o salário de seus 200 mil professores, decide criar uma prova e impor condições mediante as quais uns ganharão bônus, outros não. Em vez de estimular o trabalho coletivo, a solidariedade entre os professores, a política educacional de Serra produz divisão. Quem avaliará o carinho e a bondade de uma professora que há vinte anos cuida de suas crianças como se fossem seus filhos? Ganhará menos que um professor recém-ingresso porque este respondeu melhor a uma prova arbitrária estabelecida pela secretaria de educação? Quem medirá o ensino da bondade, da coragem, da honestidade, da justiça, do amor? Em sua cegueira neoliberal, e distraído pelos latidos furiosos da mídia, o candidato à presidência da República, José Serra, não consegue ver a história, sensual, perversa, implacável, dançando à sua frente.
Já temos relatos numerosos de que a política de bônus tem incentivado professores a passarem cola a seus alunos, visando obter melhores resultados e, com isso, pingar mais alguns trocados em sua conta bancária. Uma política de méritos poderia até ser eficaz, se obedecesse aos critérios tradicionais de tempo de serviço, publicação de artigos, ascensão acadêmica, concurso público auditado. A prova da Secretaria de Educação, cheia de erros, está longe de avaliar corretamente a qualidade do professor. Além do mais, deveria ter a aprovação da categoria. Impor uma prova contra a vontade dos professores foi um gesto extremamente cruel e autoritário.
É muito mais importante que a base salarial seja digna, e que as condições de trabalho sejam melhores. As escolas devem receber material e obras de infraestrutura, para que se tornem mais atrativas e mais agradáveis. A criação de disparidades arbitrárias, através de critérios débeis e duvidosos, entre as rendas dos professores, apenas dará motivo para insatisfação e desconforto.
Casualmente eu estive, semana passada, na manifestação dos professores paulistas, diante do MASP. Impressionou-me muito. Centenas de plaquinhas com nomes de cidades do estado. Campinhas presente, Jundiaí presente, Marília presente, Ribeirão Preto presente. Eles vieram de toda a parte, com pouco dinheiro no bolso, grandes esperanças na cabeça, muita coragem no peito. A maioria mulheres, jovens ou senhoras. Cheias de energia, empunhando plaquinhas e faixas de protesto.
Era um protesto tão autêntico, tão sincero, que na verdade não correspondia apenas à questão salarial dos professores paulistas. "Não queremos bônus, queremos salário", gritavam os manifestantes. Mas o espírito que animava aquela manifestação era muito mais antigo. Lembrei-me, emocionado (e desculpe o diletantismo pedante), das terríveis lutas sociais da Roma antiga, que eu havia lido há pouco em Tito Lívio. A plebe e seus líderes contra os patrícios.
Tudo aquilo se repetia ali, na minha frente. Pouco mais adiante, já um pouco afastado do burburinho, eu cruzei com uma senhora que falava sozinha:
- Bando de vagabundos! Ordinários!
Olhei espantado. Ela vestia-se impecavelmente. Tinha um penteado que devia ter-lhe custado duzentos e quarenta reais, e entrou numa agência do Bradesco da Avenida Paulista. Não pude evitar um sorriso triste diante daquele simbolismo tão cru, tão brutal. Ela xinga os professores e entra no Bradesco. Meu espanto adveio do ódio profundo que emanava de sua voz, de seu olhar. Senti ali uma faísca da guerra interclassista. No ódio da madame pude ouvir os discursos de Appius Claudius contra a plebe.
Algumas poucas semanas atrás eu estava lendo exatamente... Títio Lívio. As partes mais interessantes do primeiro volume são as lutas sociais em Roma. Plebeus versus patrícios. Ambos alternam vitórias e derrotas. É interessante, porém, observar que, apesar das sucessivas vitórias patrícias, os plebeus sempre ganham no final. As leis romanas, em seu ir e vir reacionário ou revolucionário, acabam sempre dando ganho de causa aos plebeus. Porque eles formam a grande maioria. Porque são combativos. Nunca desistem de seus sonhos. São guerreiros. São corajosos. São romanos. A grandeza romana, portanto, está ligada visceralmente às vitórias de sua classe trabalhadora. A ascensão de Júlio César é seu triunfo final, pois César era ligado aos "populares", o partido da esquerda romana.
Esse triunfo, infelizmente, corresponderá ao fim da democracia. Não é César, todavia, o carrasco maior da república. São as classes conservadoras, com seu egoísmo inquebrantável, sempre querendo amealhar todas as terras e sempre especulando com o preço dos alimentos, que levam o império a quase se desfazer em pedaços, forçando uma situação onde somente um ditador poderia estabelecer a paz social.
*
Esqueçamos Roma, contudo, até porque estou simplificando tudo horrivelmente. A ditadura, em breve, irá golpear, como sempre, o lado mais fraco, os trabalhadores; e o império começará, a partir daí, a desmoronar. Enfim, voltando ao presente, temos aqui um material profundamente vivo, terrivelmente vivo, para analisarmos. Nesta sexta-feira 26 de março de 2010, dezenas de milhares de professores protestaram mais uma vez contra o governador José Serra.
Eu acompanho a luta dos professores de São Paulo desde o início. Desde que a secretaria de educação decidiu reformar a política de remuneração e carreira dos professores sem o mínimo respeito aos anseios e propostas dos próprios professores. As associações e sindicatos da categoria foram, desde sempre, ignorados, tratados como inimigos, desprezados. Com apoio irrestrito da mídia, que, aliás, nunca se posicionou ao lado dos professores.
Então volto rapidamente a Tito Livio. A educação é também uma espécie de guerra. Contra a ignorância. Os professores são os soldados. Lembrei que, na Roma Antiga, quando os soldados, por razões politicas, estavam insatisfeitos com seus generais, eles perdiam deliberadamente as batalhas. Foi assim, inclusive, que os plebeus arrancaram tantas vitórias aos patrícios. Eles ameaçavam entregar Roma a seus inimigos se os patricios não lhes fizessem justiça. Preferiam ser dominados por outros povos a ser escravizados por seus próprios conterrâneos. Por outro lado, não se pode acusar os soldados e plebeus romanos de antipatriotismo. Ao fim, eles sempre acabavam lutando por seu país, e sempre demonstraram infinita paciência e moderação em suas demandas.
Entretanto, como o senhor Paulo Renato, secretário de educação de São Paulo, pretende dar combate à ignorância no estado, se não respeita os soldados desta guerra? Como ele pretende entusiasmar os professores do estado dando-lhes vale-refeição de quatro reais? Desmerecendo seus sindicatos? Mandando espancar os professores?
O secretário de educação deveria ser aliado dos professores. Deveria proteger-lhes. Assim como o governador. José Serra, porém, não dialoga. Mais de quarenta mil professores protestam diante do palácio Bandeirantes, e o governador simplesmente desaparece. Pior, deixa que a polícia reprima o protesto.
O mais grave de tudo, porém, é a ofensa moral. Quando o governador e seus aliados na mídia tentam descaracterizar a luta sindical como mero instrumento de campanha eleitoral e partidária, dizendo coisas do tipo: "essa greve é política; é coisa do PT; é trololó petista; etc", quando age assim, Serra denigre gravemente a própria democracia, e a própria política.
Greves ou manifestações, mesmo quando procuram se ater exclusivamente a reivindicações salariais, sempre serão políticas. Esse aspecto político, longe de ser um "defeito", como Serra sugere, é o aspecto mais nobre de uma greve. Os trabalhadores não querem apenas salários. Exigem o direito de participarem das discussões políticas que moldarão o seu futuro.
A chave do sucesso de Lula, e Serra e seu secretários deveriam ter aprendido isso, é que ele nunca inventou nenhuma reforma mirabolante. Lula sempre discutiu as reformas com as próprias categorias que seriam afetadas. Vamos melhorar o ensino? Chamem os professores, chamem seus sindicatos, e vamos discutir, juntos, o que é melhor para a categoria. Serra não fez isso. Pretendeu impor, autocraticamente, ditatorialmente, reformas de cima para baixo, ignorando, desprezando, humilhando, os anseios e os sonhos de centenas de milhares de professores.
Falta bom senso aos tucanos. Como eles pretendem melhorar a educação do estado desta maneira, punindo os professores? Dando bônus em vez de salário? Como eles pretendem incutir o entusiasmo necessário? O combustível do reacionarismo, na maioria das vezes, é a estupidez e a falta da capacidade de se pôr no lugar do trabalhador. Não é preciso grande capacidade intelectual para imaginar que os professores precisam de condições psicológicas adequadas. O professor tem de estar tranquilo e satisfeito para poder ser um bom profissional. Mesmo se recebesse o triplo do que recebe hoje, mesmo se as condições de infraestrutura das escolas fossem maravilhosas, mesmo assim seria uma profissão difícil, porque não é mole enfrentar sozinho a teimosia e ignorância de dezenas de pestinhas. Entretanto, Serra pretende que os professores enfrentem tudo isso sem salário, sem condições estruturais, e ainda por cima sendo humilhados com mudanças autocráticas, de cuja formulação não participaram, e com as quais não concordam.
*
Não digo que o governo deva ficar refém dos sindicatos. Mas que mantenha uma discussão aberta, transparente. Se Paulo Renato decidira fazer uma reforma que contava com oposição dura da Associação dos Professores do Estado de São Paulo (Apeoesp), deveria, no mínimo, ter feito um debate público, para que as opiniões pudessem ser confrontadas democraticamente e acompanhadas pela sociedade. Esse tipo de decisão de gabinete, fechada, formulada misteriosamente, pode servir para aumentar juros ou mexer no câmbio, mas não se pode agir assim em situações que afetarão profundamente a vida de 200 mil profissionais de ensino e milhões de crianças.
A história ensina que arrogância patrícia, quando tem o poder político e econômico, consegue esmagar facilmente as manifestações de insatisfação da plebe. Mas essa facilidade é sempre aparente e provisória. Porque a plebe, a cada derrota, ressurge mais forte. Mais violenta. Mais dura. O que os patrícios não conseguem compreender é que, à diferença deles, a plebe luta por sua própria vida. Quando se sabe que o vale-refeição do professor paulista é de 4 reais, está claro que sua luta (e isso, mais que tudo, é uma luta política!) é também por sobrevivência. E a luta pela sobrevivência é do tipo da qual não se pode nunca desistir, porque é uma luta de vida e morte.
Os tucanos deveriam aprender que a política de educação não deve se medir apenas por pontinhos a mais ou a menos na prova da Saresp. Observando aqueles milhares de professores se manifestando em frente ao MASP, eu vi que o professor luta acima de tudo por sua dignidade e pelo direito de ser feliz. Constatei ainda que o PSDB, ao acusar a Apeoesp de fazer política partidária pró-PT, apenas humilha os professores, que sabem, no estômago, que não lutam pelo PT, e sim porque a merda de seu vale-refeição não paga nem um lanche, quanto mais um almoço! Com seu discurso preconceituoso (porque discrimina o sindicato e o professor por terem um partido político), o PSDB apenas empurra o professorado para a esquerda, produzindo mais um núcleo duro antitucano no estado.
A experiência da luta sindical, por parte dos professores, por outro lado, está produzindo novas lideranças. Esta é a beleza e a profundidade de tudo isso, porque não falo somente de lideranças políticas, sindicais e partidárias. Falo de liderança, ponto. Voltarão para suas escolas com o espírito mais amadurecido, e quando explicarem aos alunos a história da humanidade, terão, em sua mente, em seu coração, um grande arsenal de exemplos de solidariedade, coragem, astúcia, dor e medo, que somente a luta, a terrível luta da vida, pode nos ensinar.
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Gostei. Bonito post.
Testando.
Muito bom.
André F.
É uma policial.
Incrível o cinismo do desgovernador Zé Tilápia.
Serra quer ser o novo "Rei-Sol". Mas ele esquece-se do que aconteceu com o monarca francês...
Ah,,o professor Hariovaldo vai pegar esta foto ai da passeata e vai publicar no blog dele dizendo que são pessoas festejando o aniversário de Zé Serra.
Essa ai da policial sendo carregada pelo professor não faço a menor idéia da leitura que ele vai fazer
Parabéns pelo texto!!! Ainda estou emocionada!!!
Um Viva a Luta pela Vida!!!
Bom artigo, Miguel! Pelo visto essa greve produziu um efeito cascata, pois hoje no Rio (onde a situação é bem pior) teve uma greve. Vamos ver o que vai dar.
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