20 de fevereiro de 2009
A carantonha da Folha
Está bem claro para mim que a Folha de São Paulo, ao publicar nota onde afirma que a ditadura brasileira não era das mais duras, e sim uma "ditabranda", cumpria uma missão, consciente ou não, de reescrever a história brasileira, com vistas a lançar fumaça sobre uma questão ideológica primordial. O fato é que a ditadura brasileira foi o efeito natural de um movimento organizado pelos representantes do conservadorismo no Brasil. Ou seja, pela direita, com o auxílio mais que luxuoso da imprensa.
Outro dia estava eu lá na Biblioteca Nacional, fuçando edições antigas do jornal O Globo. De repente, eis-me a sorrir. É que descobri um editorial, de meados de março de 1964, realmente muito engraçado. Pena que não posso reproduzi-lo aqui. O Globo faria uma contribuição importante à história brasileira se publicasse na internet as suas edições antigas. Pois bem, era um editorial furibundo. Lendo-o, podia visualizar a baba de raiva vazando da boca de quem o havia escrito. Um editorial anônimo, que são os piores. Acusavam uma instituição norte-americana de grossa calúnia, por ter incluído, numa prestigiada enciclopédia, um verbete sobre o jornal O Globo que dizia o seguinte: publicação de caráter conservador, financiada por instituições estadunidenses.
É de morrer de rir. O Globo afirmava que iria processar legalmente a instituição. Não sei a fonte que levou a universidade a incluir tal informação numa enciclopédia, mas certamente não se tratava de um absurdo inconcebível. Por mim, que tenho desconfiança e antipatia de quaisquer teorias conspiratórias, prefiro acreditar que se tratava de uma desinformação. Mas era totalmente plausível.
Nas semanas seguintes - ainda em março de 1964 - as páginas do Globo encher-se-ão de ameaças e conspirações sombrias sobre uma crescente onda comunista no Brasil. Todos os dias, na primeira página, havia notas conclamando as pessoas a comparecerem a atos contra o governo, em prol da família, da tradição e da propriedade.
Parlamentares conservadores eram entrevistados diariamente, e suas declarações apareciam com destaque. Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, ainda em março, segundo o jornal, diz que aprova a tese do impeachment do presidente da república, proposta por um outro político. Motivo? Incitamento à subversão.
Assim a imprensa costura apoios, estabelece ligações entre chefes políticos, empresários, oficiais do exército e a legião de donas de casa, assustadas com a possibilidade de perderem seus apartamentos para os "comunistas".
De nada adiantavam os discursos apaziguadores de João Gourlat, assegurando que não haveria nenhuma mudança radical na ordem jurídica brasileira, e que as famigeradas reformas de base (sobretudo a agrária) não representariam nenhuma ruptura com o sistema democrático. Visavam, ao contrário, fortalecê-lo, ao abrir caminho para um desenvolvimento econômico mais sustentável.
Há gente que não considera tão relevante assim o papel da imprensa no golpe militar. Não percebem (até porque a mídia e setores da elite continuam tentando refazer a história) que, através da construção de um grande consenso anti-governista, e mais que isso, um sentimento de ódio contra João Gourlat, pintado como um usurpador, um ser nocivo à democracia, e não o seu representante máximo, o golpe foi legitimado junto à opinião pública. Essas pessoas possivelmente mudariam de idéia se lessem, por si mesmas, as edições daquele ano fatídico.
Num outro editorial, O Globo desdenha do apoio que Goulart recebe da União Nacional dos Estudantes, dos sindicatos, de diversas associações trabalhistas, afirmando que os verdadeiros representantes da sociedade brasileira são as associações cristãs de donas de casa et caterva.
A matéria recente da Folha, referindo-se à ditadura brasileira como "ditabranda" e a subsequente resposta agressiva que deu aos professores Fabio Comparato e Maria Benevides, porque eles manifestaram indignação contra este eufemismo anti-histórico e capcioso, mostra o quanto faz falta uma mea-culpa geral de importantes setores da imprensa brasileira, que apoiaram entusiasticamente o golpe militar, enriqueceram-se durante o mesmo, e até hoje ainda sentem pruridos totalitários, como que flashbacks, emergirem à tona de seus pensamentos.
Os efeitos da ditadura permanecem até hoje. A polícia brasileira é uma das mais violentas, brutais e cruéis do planeta. Meu tio, Francisco do Rosário Barbosa, um jovem não-político, roceiro, um poeta singelo e ingênuo, foi preso por motivo absolutamente fútil, e torturado até a morte, na nona DP do Catete, Rio de Janeiro, em 1981, finalzinho da ditadura, num tempo em que já havia ocorrido a abertura política. A sociedade conhece os casos mais famosos, como a morte de Vladimir Herzog, mas muitos historiadores contam que dezenas de milhares de lideranças rurais e urbanas foram mortas no Brasil, sem que disso houvesse notícia. Como sempre, os anônimos foram as maiores vítimas.
Não, não tivemos uma "ditabranda" e sim um regime totalitário assassino, perverso, torturador, que exilou grande parte da intelectualidade brasileira. A tentativa grotesca de reescrever a história, e a forma sutil com que procurou fazê-lo, desvelou a carantonha da Folha, e por consequência a de seus colegas, Globo e Estadão, irmanados na mesma cartilha paranoicamente anticomunista e antidemocrática pela qual rezavam nos anos 60.
O momento atual é bem diferente. A sociedade é livre para manifestar o seu repúdio, e existem tecnologias de comunicação que nos permitem reagir culturalmente de maneira mais efetiva que outrora. No fundo, o texto da Folha de São Paulo serviu para enfraquecê-la politicamente, mostrando-a como uma publicação que se torna mais e mais conservadora e reacionária, beirando o extremismo e a provocação. Pior para ela.
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# Escrito por
Miguel do Rosário
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sexta-feira, fevereiro 20, 2009
# Etichette: Ditabranda, Ideologia, Política
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Eu acho que na última semana a FSP mostra que está assumindo, e explicitamente (veja os títulos do post do Josias sobre Dilma e Marta, esse editorial e, sobretudo, a resposta aos comentários da Maria Vitória e do Comparato) a função de cão-de-guarda da direita, melhor de pitbull da direita, que foi exercido antes pela Veja. E me parece que tudo isso, junto com a campanha de inculpação do Battisti como assassino comum, é para armar a carantonha e a retórica de ameaças à Dilma Roussef. Afinal, mulher eles chamam de vadia, vagabunda e cínica - como a Maria Vitória Benevides - ou algum homem que se aventure a pensar como essas mulheres. Isso pra não falar no tom cada vez mais agressivo contra Lula. Li no Cloaca News que hoje um tal de Sérgio Malgebier, editor do Caderno Dinheiro da FSP, refere-se à "boçalidade tão brasileira" de Lula, além de tratar o presidente da República como o "último fruto podre da ordinária podridão partidária". Como bem diz o Cloaca News, a Folha destampou de vez suas fossas. E ainda estamos no comecinho de 2009. Some-se à perseguição ao juiz De Sanctis (veja no blog do Nassif), à recente decisão do STF sobre prisão de criminosos somente após esgotados todos os recursos e ... bom, não sei como chegaremos a 2010.Pelo menos, eu não sei como chegarei ao fim do ano.
Prezado Miguel, apenas um pequeno reparo: Magalhães Pinto era governador de Minas e não de SP. Fui vítima dele, moro em BH. As forças das trevas estão sempre espreitando e ocupando espaços incautos. Jânio chamou- as de forças ocultas. Não são ocultas, são escancaradas. Os que acompanham a política com mais apuro enxergam com clareza essas forças. Estão louquinhos para reconquistar o poder central. Mas com Lula o buraco é mais embaixo, ele é muito, muito inteligente. Os caras vão fazer coisas das quais até Deus duvida. Mas, como escrevi, com o Lula estamos vendo há 06 anos que o buraco é mais embaixo. NÃO PASSARÃO.
falou, já corrigi.
Miguel,
muito bom seu post! Os jornalistas e bloqueiros sérios deveriam fazer mais jornalismo deste tipo.
Investigativo, pesquisando em arquivos da própia grande Mídia ou outras fontes.
A velha e sábia frase "A história é uma farsa que se repete" mostra a necessidade de estarmos sempre relembrando estes fatos, para assim evoluírmos nas conquistas políticas e não ficarmos repetindo os mesmos erros do passado recente.
Por exemplo: por que ninguém pesquisa e analisa a perseguição a que Getúlio era sujeito pelo PIG da época? Cabe lembrar que após o suicídio do mesmo a primeira coisa que o povo fez foi colocar foco nas redações dos jornais cariocas de direita. Não é possível que ninguém tenha interesse em pesquisar e fazer estas analogias óbvias com o governo Lula.
p.s:
- vc deve ter lido os artigos relativos à Março de 64 e não de Abril. O golpe foi em 31/03 ou 01/04/64. Os fatos relatados por vc parece que tem a ver com Março, durante a preparação ao mesmo.
Um abraço,
exato, eu pesquisei o microfilme do Globo de março, na seção de Periódicos da Biblioteca Nacional. Também já pesquisei bastante as edições de agosto de 1954. A perseguição à Getúlio foi terrível. Mais que isso, não davam as notícias referentes às ações do governo, de maneira que passavam a seus leitores a impressão que o governo não fazia nada, quando foi o contrário, foi um governo de grandes realizações. Já andei escrevendo sobre isso. O Globo, e outros jornais (à exceção do Ultima Hora) sempre se colocaram contra todo o tipo de evolução trabalhista, como salário minimo, criação de Petrobras, da Eletrobras, etc.
Esse episódio é simplsmente ridículo. Você viu a resposta que o jornal deu ao Fábio Comparato? Tá lá no Azenha.
A coisa tá apertando. Imagine o que não virá em 2010
O Globo é muito, mas muito reacionário, foi e continua sendo o porta-voz do golpismo aqui no Rio. Infelizmente, faz a cabeça de muita gente, principalmente da classe média, inclusive de amigos. Quando algum deles diz, "li no Globo que...", mudo logo de assunto, porque não quero me estressar. Mas pior que esse jornal, é a Folha. Ela é arrogante, prepotente e metida a besta. Se acha o NewYork times tupiniquim. Tupiniquim não, por que eles não se acham brasileiros. Representam a elite separatista de São Paulo. E mais do que isso, são o porta-voz do imperialismo paulista sobre o Brasil. Sua meta principal é concentrar cada vez mais a renda e o poder político na terra da garôa e da Ana Maria Braga. A maior prova de que a imprensa paulista é provinciana é que os dois principais jornais de lá se chamam "Folha de São Paulo" e "Estado de São Paulo". Enquanto no Rio é O Globo e Jornal do Brasil. Então, quando os jornais paulistas pretendem se tornar nacionais, eles já carregam no nome, a imposição do poder paulista sobre o "resto" do país. Faz parte desse imperialismo a inexplicável e injustificada propaganda da Sabesp fora de São Paulo. E eu tenho percebido, nas reclamações, que as pessoas tem se sentido invadidas. Na verdade é isso que o Serra, a elite e a mídia paulista querem fazer, invadir o Brasil. Não territorialmente, mas politicamente.
Oi Leo, eu vi sim, eu cito no post. É verdade, a coisa tá ficando violenta. Mas a situação hoje é completamente distinta de agosto de 1954 e março de 1964. A classe média já não marcha tão unida, e parte dela conseguiu tomar a pílula "vermelha" e a blogosfera caminha, cada vez mais rápido, para se tornar um fator influente na comunicação de massa.
Não vejo com bons olhos esse movimento. Será que, diante de uma eventual derrota de Serra, eles já não estão armando um plano B? Começam falam que a ditadura foi ditabranda, depois inventam uma crise institucional como a de 2005,mobilizam a populaçao contra a corrupçao e depois apresentam a solucao: Serra (só que por meio de um golpe de estado). Voce não acho que essa teoria da conspiraçao é perfeitamente plausével?
Tira uma foto da matéria...
Fiz o upload das partes 2 e 3 do documentario do Mauro, que tive de corrigir. Youtube: Gonzumbrasil.
Vejo agora na TV uma matéria sobre uma exposição fotográfica em Goiânia - Rio Meia Ponte.
A curadora da exposição de imagens do holocausto, informa que o evento tem como objetivo que se evite a negação do holocausto, prática comum nos seguidores de Hitler.
Foi quando vi o quanto é necessária uma campanha idêntica em relação à ditadura no Brasil, se possível com uma exposição fotográfica em várias cidades.
Afinal de contas, um jornal como a Folha de SP veio com esta história de que a ditadura na verdade foi uma "ditabranda." Isto que a Folha fez foi muito grave e tem um sentido extremamente deseducador.
Afinal de contas o brasileiros nascidos e os que virão terão de se informar sobre este período triste da nossa história.
Apenas uma observação: na edição de terça-feira, Fernando de Barros e Silva publicou artigo na página A2 refutando o termo e a postura do jornal. Achei de uma bravura exemplar. E não me surpreenderei se ele for demitido nos próximos meses.
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