Olha só isso. Uma típica matéria que, sem mentir, falseia a realidade e, sobretudo, produz uma interpretação geopolítica equivocada. A capa do Caderno Dinheiro da Folha de São Paulo, hoje, começa dizendo que o Brasil vem perdendo espaço no comércio com os Estados Unidos. Só lá pelas tantas, somos informados que o Brasi passou de 14º para 16º na lista dos principais fornecedores para os EUA.
O erro da matéria é que ela não contextualiza. Não lembra ao leitor que as exportações brasileiras experimentaram um salto impressionante nos últimos dez anos, de 228%.
Até a matéria do IPEA é distorcida, e talvez por culpa da ingenuidade dos pesquisadores. Confiram a manchetinha à direita: Commodities passam a dominar a exportação. A impressão que se passa é que o Brasil está voltando ao passado, a ser um exportador de matérias-primas. Ser burro é fácil. É só relaxar. O mundo é complicado e tudo fica mais difícil se quem deveria nos ajudar, como a imprensa, tenta nos tornar mais burros do que já somos.
O jornalista poderia ajudar o pesquisador do IPEA a enxergar uma coisa óbvia. As exportações brasileiras de produtos industrializados não caíram. Ao contrário, aumentaram de maneira muito forte. A exportação de autopeças, por exemplo, cresceu 156% em 10 anos e já é o quinto principal produto no ranking, gerando 9 bilhões de dólares nos últimos 12 meses. A venda de aviões cresceu 146% em 10 anos. A exportação de produtos eletrônicos cresceu 206% no mesmo intervalo.
(Clique na tabela para ampliar).
Ocorre que, comparado ao salto gigantesco das vendas de ferro, petróleo e soja para a China, elas perdem no percentual. Entende? No percentual, as exportações de industrializados perdem pontos na comparação com a tríade petróleo, ferro e soja. O petróleo é um produto caro e pesado, e já é um dos principais produtos de exportação do Brasil. A exportação brasileira de petróleo cresceu 3.000% em 10 anos! É claro que nas estatísticas os produtos primários aumentam sua participação. Mas daí a falar que estão "dominando" é, no mínimo, ambíguo.
Mas não tem graça, porque o Brasil também importa muito, de forma que a balança cambial do petróleo fica empatada e, até que o pré-sal entre em atividade, permanecerá empatada muito tempo. E tem a carne também, cujas exportações cresceram 547% em 10 anos. A carne entra no grupo de produtos primários, o que tem um aspecto muito injusto, porque a tonelada da carne é vendida por quase 2.000 dólares, contra 40 dólares do ferro. A carne, por tão perecível, deve ser semi-industrializada antes de seguir viagem.
A soja é incrível mesmo, e os brasileiros devem ter muito orgulho do Brasil. Os produtores brasileiros ultrapassaram os americanos (que por um século dominaram esse mercado) em produtividade, quantidade produzida e quantidade exportada. A soja gera dezenas de bilhões de reais para a economia brasileira, por isso tem que ser vista como um de nossos produtos mais importantes. É preciso um olhar urbano e cultural para a soja, pois há uma civilização que floresce no centro-oeste e sudeste em torno dela.
É uma cultura conservadora, com certeza. A força de José Serra tem essas forças por trás. É por isso que a esquerda deve respeitar a grande cultura agrícola. É um voto eternamente conservador e representa forças econômicas poderosas. É contrabalançado, porém, pelo voto popular da pequena agricultura, muito mais relevante em termos populacionais, e que não possui uma representação no Congresso correspondente a sua grandeza.
As exportações brasileiras de produtos industrializados, sobretudo autopeças, cresceram, a um ritmo honesto e firme nos últimos 10 anos, e continuam crescendo. A exportação de soja explode num ano, mas vem uma seca, um problema climático qualquer, e desaba no outro. O ferro é vendido a quarenta dólares a tonelada e apenas perpetua a miséria no Pará e em Minas Gerais.
Os setores progressistas da exportação são as autopeças, maquinários, sapatos, carnes, e centenas de produtos agrícolas, muitos levando certificação de qualidade ambiental e social, conforme é a tendência nos mercados de consumo do primeiro mundo.
*
Os grandes compradores de produtos industrializados do Brasil são nossos vizinhos. O Financial Times, a The Economist, em toda Europa, os EUA, todos estão falando muito bem do Brasil, mas no frigir dos ovos quem põe a mão no bolso e compra nossos manufaturados são argentinos, venezuelanos, chilenos, mexicanos, caribenhos, equatorianos.
Sem esquecer um ponto fundamental, que falta à matéria da Folha. As exportações brasileiras de produtos industrializados têm uma boa razão para não terem crescido muito: a forte demanda interna. Em todo país, quando há forte demanda interna e o câmbio é favorável, é evidente que é muito mais confortável ao industrial vender a seus locais do que mandar seus produtos para o outro lado do mundo. Empresário não escolhe cliente. Vende para quem pode e quer comprar. E o consumo de industrializados no Brasil, este sim, explodiu. Na verdade, as fábricas de eletrônicos não estão dando conta de atender a demanda doméstica. Há falta de DVDs, TVs, rádios, celulares, laptops, computadores. As vendas de computador no Brasil aumentaram, nos últimos 6 anos, a taxas anuais superiores a 20%. Chegou a quase 40% em 2006 ou 2007.
O leitor da Folha, mais uma vez, encerrará a leitura do Caderno Dinheiro com uma conclusão pessimista. Se for um empresário, pode ser que tome uma decisão que envolva um recuo em seus investimentos e mesmo a demissão de gente. No auge da crise, citei Keynes no blog. O economista amigo de Roosevelt escreveu sobre o dano à economia causado pela propaganda de incentivo à recessão, gerada na imprensa por motivação política.
É por essas e outras que a China, que o Sardenberg, para nos diminuir, adora comparar ao Brasil, cresce 15% ao ano e nós crescemos, no máximo 6%. Eliminar essa imprensa que insiste em falsear a realidade para prejudicar a economia brasileira, seria como um balonista lançar, para fora de seu balão, um hipopótamo inusitado que ali tivesse se escondido.
24 de novembro de 2009
Distorções geocomerciais
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E é esse mesmo jornal que senta o pau em Lula porque ele pressiona a Vale a agregar valor ao ferro no Brasil. Incoerência total.
Miguel,
Acho que tem uma coisa importante que você não destaca no artigo. Apesar de a exportação brasileira em setores tecnificados ter crescido nos últimos anos, a importação desses produtos têm crescido em ritmo mais elevado, tornando tais setores cada vez mais deficitários e aumentando a dependência do país dos setores primários para saldos positivos em sua balança comercial. Penso que, temos sim, que dar atenção ao peso excessivo que o setor tem em nossa balança e consequentemente no Balanço de Pagamentos. Ainda mais considerando que a alta nos preços pode ser passageira...
Abraço,
Thomas
P.S. A soja pode ser importante para a balança comercial nacional, mas também é ela que destrói o cerrado (uma das maiores biodiversidades do mundo), destrói a amazônia e também é utilizada em grande escala na alimentação da pecuária intensiva, que emite grande parte dos gases poluentes do planeta. Além disso é parte do modelo latifundiário agroexportador dependente dos insumos dos grandes oligopólios do planeta que tanto degrada o ambiente, prejudica o pequeno agricultor e acaba com a biodiversidade. Olhar para dados econômicos sem destacar o que os olhos não vêem não vale!! É preciso pesar na balança...
Abraço,
Thomas
Corrigindo, "a importação tem" e não têm...
prezado thomas, você tem razão quanto ao perigo da soja destruir parte do cerrado, o que é uma grande estupidez por parte dos empresários que fazem isso, visto que a biodiversidade proporciona uma vasta gama de plantas, perfumes, essências, que podem ser usadas comercialmente sem agressão do uso da natureza. E mesmo sem pensar em comércio, não há sentido em destruir o cerrado, visto que o Brasil tem áreas degradadas suficientes para ampliar várias vezes a sua produção de soja.
Quanto à area de manufaturados, o Brasil tem importado, sobretudo, bens de capital, o que tem sido importante para a renovação maquinária das indústrias.
O Brasil é um país com recursos naturais gigantescos, monstruosos, então é ingênuo achar que, na balança comercial, eles não terão um peso predominante, mesmo que elevemos a quantidade de manufaturados exportados.
A essência do meu post, no entanto, é continuar acentuando a importância da América Latina e Caribe como mercado de nossos manufaturados. Nossos déficits nesse segmento se dão com Europa, Eua, China e Japão. Nossos vizinhos tem comprado nossos manufurados mais sofisticados, como peças de reator nuclear, aviões, autopeças, e eletrônicos.
Obrigado pelo comentário. Abraço.
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