3 de novembro de 2008

cigarro molhado

os poetas, as
dores descalças
auto-comiseração e delírios
que voam tão alto como
demônios libertos,
e canários loucos.

qual a dialética
de um pintassilgo?

enfim, as solidões
de pátrias vazias
as mesmas crianças
alertas
criminosas
de sempre, cara

enfim o poema
esparso, líquido, nojento
que você lambuza no rosto
não me espanta

o espetáculo
do aço resfriado
libelos mancos
desequilíbro dos mares
dos xaropes
vomitados à céu aberto

não, cara,
eu não acredito
no poder da minha covardia
na força da minha tristeza

eu alimento a morte
simplesmente
com algas sem música
e sonhos medíocres

o tempo me aperta
me bolina
me engana
cafetão desgraçado

duro, cara,
não é a vida,
e seus degraus
e ossos quebrados

duro é a morte
espreitando
no silêncio dos livros
ainda não lidos

nem o medo,
nem tudo ao redor
as filhas, os ratos
os sequestros
a polícia,
o pior são os homens
que dançam na chuva
e mordem o rabo
dos cães

o pior são as chuvas
silenciosas, quentes,
sujas,
molhando meu último cigarro

4 comentarios

Leonardo Martinelli disse...

Belo poema, Miguel.
Bem melhor do que o outro.
(Sinceramente, gostei mais ainda do artigo "Quando voam as cegonhas", pela observação arguta onde você propõe que a esquerda paulistana capitaneie os votos dos imigrantes nordestinos sem título eleitoral em São Paulo.
Mas você dispõe de dados que comprovem que os nordestinos de São Paulo não votam lá?
Acho que a questão de São Paulo é muito mais complicada.)


Qaunto ao seu poema, tenho algumas observações. Acho a imagem de um "último cigarro molhado" na mão de um cara que sente o gosto da derrota travando a boca é algo tão normal quanto uma criança fumando crack, Ana Cristina Cesar pulando pela janela em busca da morte - a mesma que te assusta e a qualquer um - uma jornalista preparando-se para entrevistar a patricinha cujo namorado motoboy muito puto de ciúme planeja matá-la assim que largar o serviço, pegar o filho na escola e deixá-lo na casa da ex-mulher,diante das câmeras que registram e afetam nossas cabeças.
Vc sabe, Lindbergh foi inocente até tornar-se culpado.
Isso não é para causar espanto.
Muitos são os seres humanos que enlouquecem depois de uma vida inteiramente normal.
Isso faz com as pessoas se sintam obrigadas a posicionar-se sobre o fato: jornalistas, juízes, e até mesmo bloggers à espera do Grande Telefonema, isto é, Deus.
Alguns poetas e escritores contemporâneos
que não se rendem à chorumela lírica nem à pasmaceira acadêmica.

Há tanta poesia na prosa suja do dia-a-dia quanto nos sentimentos bipolares do pequeno burguês esclarecido.

Um poeta só começa a valer pena quando as pesoas que entendem e as que não entendem de poesia lêem seus poemas e são afetados por eles, gostando deles ou não.
Os grandes poemas - porque os bons duram muito pouco - podem ser uma ponte entre o rouxinol de Keats, reflexos esparsos de uma chuva quente, um cara vomitando na esquina, mas tudo isso resulta de um acordo epifânico ente ética e estética, entre a tradição de uma arte milenar e as possibiliades de seu tempo.
Canários não enlouquecem.
Poemas , no fim das contas, são objetos feitos com palavras. Às vezes, valem até um dinheiro...

Cigarros a varejo custam nossos últimos 30 centavos de uma noitada e às vezes os deixamos cair num bueiro, se estivermos bêbados ou com azar naquele dia.

Mas o poema "esparso, líquido,nojento" talvez não queira lhe causar espanto. Talvez ele não mereça nem ser publicado. Talvez ele possa lhe dar um momento de reflexão e prazer.

Acho teu verso muito derramado, muito mais "esparso, líquido e nojento" do que você supõe.
E é isso que o salva do mero recurso ao ressentimento pela vida e às metáforas grandiosas que você usa e abusa... Um sonho, Miguel, por menor que seja, nunca é medíocre!
Vai fundo nos teus, estou indo nos meus, não nos aborreçamos mais um como o outro.
Volto para Macaé hoje.
Ah, por favor: quando procurei você, da última vez, pensei em pegar meu número da Miroir - Mas esqueci...
Como faço para receber o meu exemplar? Diga pra Priscila que por mim tudo bem, já esperava algo assim do Mirisola, mas que suspeito ter sido este o motivo para que meu poema não pudesse ser dedicado publicamente à Camilla Lopes...

Gostaria de receber um esclarecimento, enquanto colaborador, pois trata-se de uma situação delicada para mim.
Camilla terminou comigo há uma semana. Na mesma semana em que saiu com o Mirisola para jantar eme contou sobre o conteúdo da crônica.
Levo minha poesia e meu trabalho como professor muito a sério. Por isso, estou retirando hoje o post onde respondo, no calor do momento, algumas das suas acusações por telefone.
Ah, e desculpe pela hora do meu telefonema. É que realmente tenho acordado cedo, o Orlando chegou e acabei caindo pelo lado do mau humor diurno, e não do seu, viradão na rua.
Nada contra.
Eeu é que não posso mais dar esses moles.
Vamos pôr uma pedra sobre o assunto e partilhar deste império de tristezas e interesses internáuticos.
(como vc fez pra arrumar tags de patrocínio pro seu blog, hein?)
Abraço,

Leo

Miguel do Rosário disse...

falou, Leo, a gente conversa em particular. Abraço.

Miguel do Rosário disse...

Ah, e quem disse que canários não enlouquecem? Claro que enlouquecem! Qualquer ser vivo enlouquece. Até os seres inanimados enlouquecem! Vide os furacões, as tsunamis... Prenda-os em gaiolas, fure seus olhos, e veja o resultado. O canário louco era isso, um pássaro liberto da gaiola, querendo fugir para o céu, tão alto quanto possível.

Anônimo disse...

Que belo poema!
Parabéns meu joven.

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