18 de novembro de 2008

Servidão e burrice nacional

Família brasileira - Jean Baptiste Debret



Aproveitando toda questão informal e descentralizada que a internet e os blogs proporcionam à informação e opinião, inicio hoje colaboração - que pode ser curta, média ou longa, isso é para depois - no Óleo do Diabo.

Sou paulista, embora minha família toda seja do Rio. Meus pais vieram para São Paulo depois de casados e iniciaram família aqui. Sou estudante de Jornalismo pela PUC e membro da atual gestão do Centro Acadêmico Benevides Paixão, de Jornalismo, Multimeios e Artes do Corpo. Na sexta, vencemos as eleições novamente.

Tenho 21 anos e escrevo um blog desde dezembro de 2006. Antes era no iG, mas o blog saiu do ar sem explicações - vírus, suponho - em maio. Desde junho, estou hospedado no blogspot. Comecei a trabalhar com jornalismo de economia aos 19. Sou estagiário no Valor Econômico.

Algumas coisas são vistas sob perspectivas que, se isoladas do cotidiano, são ridículas. Tem-se um desenho muito claro do homem urbanizado e metropolitano brasileiro - o perfil médio dos que tem acesso aos blogs. Há uma rotina clara, com transporte, trabalho e muita informação, que vem dos jornais, das rádios ou da televisão. Mesmo na internet fica-se refém da mesma visão. Que visão é essa? É aquela do brasileiro forasteiro. Do cara que sonha em morar fora, em sair daqui, que odeia o país e copia tudo de fora. Adora comparações com o mundo "moderno". Claro, em tempos de crise no dono do mundo esse discurso todo vai por água abaixo, mas ainda é dominante nos meios de comunicação.

Mas é preciso alertar, por meio dos blogs, que muitas coisas não são como a verdade absoluta que os meios de comunicação tentam fazer crer. E isso não sou eu quem diz. É só refletir um pouco diante do que se vê todo dia.

***

Alguns temas são sempre polêmicos. Previdência pública é um deles. Vou dar um exemplo da mais nova discussão que acontece no mundo político e midiático sobre a Previdência. No Brasil, o sistema de concessão de benefícios previdenciários já mudou diversas vezes. Foi "adaptado pela modernidade", diria o discurso liberal. Durante os anos 90, dentre as várias reformas passadas pelo governo FHC, a reforma da Previdência alterou o pagamento de aposentadorias e pensões.O discurso liberal era de que o governo tinha de dar lucro. E como Previdência no Brasil é algo novo, pagamos mais benefícios do que recebemos contribuições. Ou seja, déficit sempre.

Como resolver, segundo os liberais? Diminuindo o valor dos benefícios pagos a fim de fazer caber. Parece complicado? Trago então para a realidade social. Pegue um aposentado. Ele se aposentou antes dessas mudanças. De acordo com suas contribuições ao INSS, na data da concessão - após se aposentar - seu benefício equivalia a três salários mínimos. Com todas as mudanças salariais ocorridas nesse espaço de tempo, hoje aquele valor equivale a um salário mínimo.

Agora para a realidade política. O senador Paulo Paim (PT-RS) desenvolveu um projeto que devolve a esse aposentado o valor dos dois salários mínimos. Como fez isso? O valor correspondente aos dois salários mínimos no nosso exemplo será dividido em cinco parcelas, pagas a cada ano. No final de cinco anos, o poder de compra estará restabelecido. Dessa forma, a equiparação é diluída no tempo, não atrapalhando a política de gastos do INSS.

O projeto do Paim foi aprovado na noite da quarta-feira 12/11 pelo Senado. Vai agora à Câmara de Deputados. Se aprovado lá, vira lei. Virou nota nos jornais. Na quinta-feira passada O Globo deu manchete: "Senado sobe aposentadorias e rombo pode ser de R$ 9 bi; Projeto segue votação na Câmara, onde governo tentará barrá-lo". A leitura que o jornal faz é aquela velha cantilena liberal, de que aumento de gastos com Previdência não é política social, mas rombo. Ao situar que o governo tentará barrar a idéia, não só o jornal demonstra um raquitismo social do governo - se este de fato quiser barrar - mas também coloca uma pressãozinha para que o projeto não passe. A edição de hoje do Globo já traz a afirmação tão querida do Paulo Bernardo, ministro do Planejamento, de que o governo barrará a aprovação das medidas de aumento dos benefícios.

É justo isso? Quer dizer, faz-se uma gritaria danada por um aumento de R$ 9 bilhões anual. Sabe quanto o mesmo governo gasta com juros da dívida, todo ano? Algo como R$ 120 bilhões. Se é para cortar gasto público, porque não começar por uma conta que beneficia poucas famílias com muito ao invés de outra que beneficia muitos com pouco?

No dia seguinte, sexta, O Globo faz o super esperado: escreve um editorial sobre o tema. Com título de "Estapafúrdio", o editorial do jornal afirma que a aprovação pelo Senado do projeto de Paim "não só é estapafúrdia pelo momento que o mundo vive, com a ameaça de uma grave crise, cujo fim ninguém hoje é capaz de enxergar, mas também pelo critério em si, que tenta transferir para os aposentados os ganhos de rendimentos que não tiveram durante sua vida laboral". Em épocas de crise, quando os investimentos privados são suspensos - pela incerteza do lucro - e os bancos emprestam menos - pelo medo de inadimplência - apenas o governo tem disposição de investir. Isso é lógico e comprovável historicamente. Ao aumentar o dinheiro nas mãos dos aposentados, que consomem quase a totalidade do que recebem o governo, não está apenas transferindo renda, mas também movimentando o comércio de bens e serviços, movimentando a economia. É política anti-crise.

Além disso, essa de ficar dizendo ser injusto "transferir aos aposentados ganhos que não tiveram em sua vida laboral" é ser altamente esnobe e individualista. Parte do pressuposto que todos os aposentados tiveram a boa vida que o editorialista d'O Globo teve. Como os assuntos são os mesmos e a opinião também, o projeto de Paim alcançou o Estadão de ontem. Em editorial ("Mais gastos da Previdência"), o jornal clama que "desde que chegou ao Congresso, como deputado, o agora senador petista não faz outra coisa senão propor aumentos do salário mínimo e dos benefícios previdenciários". Que coisa ruim, não?
Quer dizer, aumentar o superávit primário pode, mas aumentar a previdência não, certo?
Fôssemos uma sociedade mais ativa, esse tipo de abuso da imprensa não passaria com a facilidade que passa. E não adianta pensar que a opinião dos jornalões não tem mais o peso que tinham antes. Podem ter perdido um bocado do prestígio, mas mantém a única influência que importa no nosso país: a dos legisladores. São estes, os representantes dos esfomeados, que são influenciados pela opinião dos jornais.

***

No sábado a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu anistia ao ex-presidente João Goulart e a viúva Maria Tereza. A União reconheceu que houve perseguição política a Jango e aceitou o pedido da família, 32 anos depois de sua morte.

Glauber Rocha gostava de dizer que o governo João Goulart foi o mais perto que o Brasil chegou do socialismo. Ele chegou a escrever um texto para teatro sobre o tema, que nunca completou, mas chegou a ser encenado no Rio, em 1995.

O governo Jango foi democrático. Ele foi eleito vice presidente - à época se votava para presidente e vice separados - e depois ganhou com grande maioria o plebiscito realizado em 1963 para decidir o regime político. Foi uma época de ebulição cultural, com maciça produção interna que olhava para dentro do país, com música de raiz, o cangaço nas telas do cinema novo, a favela nas artes plásticas, o teatro caminhando para o que viria ser o teatro de arena. O país vivia no meio do tiroteio pesado da guerra fria, com muito bedelho americano nos partidos de oposição e muita disciplina irracional nos filiados ao PCB.

Era um país que se descobria, que se inventava, que discutia nosso eterno colonialismo social e cultural, e chamava a atenção para nossas raízes. O golpe de 1964 exilou Jango, que morreu 12 anos depois em circunstâncias estranhíssimas.

Mas o Brasil não era socialista. Nem perto. Toda a ciranda econômica e financeira era privada. E isso é a base de sustentação do capitalismo. O crédito - que movimenta a agricultura - e os instrumentos de securitização - que dão garantia de preços fixos caso haja mudanças bruscas de preços entre o momento de plantar e o de colher - eram todos privados. Mesmo com um Banco do Brasil ativo na política agrícola, o sistema era privado. Os bancos, instituições familiares então (hoje, com capital aberto, são mais "profissionalizados"), eram privados. E isso é a base do regime capitalista.

Nesse sentido, Bush faz um governo mais socialista que Jango.

***
O Valor de hoje dá conta que o Ministério de Minas e Energia planeja criar uma agência reguladora para a indústria da mineração, além de permitir que estrangeiros explorem faixas de fronteira. A idéia é atualizar o Código de Mineração, de 1967. Com o tanto de estrangeiro que já é dono de papéis da Vale - maior mineradora brasileira - não é preciso abrir mais espaço para iniciativa externa. Até porque o mercado da mineração já um dos mais concentrados do mundo. Apenas gigantes participam do jogo. Permitir participação direta de estrangeiros é aniquilar qualquer iniciativa nacional de iniciar um projeto interno. Pensando um pouco, poderia se criar um modelo que compatibilizasse compras públicas e/ou da CSN, a fim de que se crie um mercado cativo para a produção do pequeno minerador, se é que isso ainda é possível de existir no Brasil e no mundo.
***
Agradeço ao Miguel pelo espaço.

11 comentarios

Miguel do Rosário disse...

parabéns pelo artigo joão. lembremos que 9 bilhões de reais é o que governo federal e estadual "deram" aos magnatas da indústria automobilistica, e que o proer, até hoje incensado pela mídia, "deu" a banqueiros o valor correspondente hoje a quase 80 bilhões de reais. o que eles nunca vêem é que o dinheiro dado aos aposentados entra na economia, é recurso injetado, de forma muito mais capilar, democrática e efetiva, na economia, beneficiando o consumo.

grande abraço e bem vindo ao blog

Anônimo disse...

Eu sou um dos que pensa em sair do pais e ir viver em um "país de verdade" (não, não é os EUA). Mas a razão não é só a mídia golpista ou só a aparentemente incapacidade do governo de fazer frente à criminalidade (nas ruas e nas cadeiras de juízes), mas o povo. Basta dizer para qualquer um que passar na rua "Vamos fazer alguma coisa" e o que ele lhe responderá? Ele dirá "está louco?".

Aquela velha máxima "cada povo têm o governo que merece" ainda é válida.

Anônimo disse...

O CONSELHO DO GOVERNADOR
18/novembro/2008 10:05

Davi Lacerda, 36 anos, graduado em Medicina pela USP e residência em dermatologia pelo Johns Hopkins Hospital (Baltimore, EUA), é dermatologista em consultório e no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

Leia trecho do artigo que ele escreveu na pág. 3 "Tendências e Debates", da Folha de SP, 3ªf, dia 18:


DAVI DE LACERDA

O pragmatismo do conselho que o governador me deu reflete o descaso do Estado com os médicos da rede pública de saúde

A São Paulo Companhia de Dança realizou no dia 7 deste mês uma magnífica apresentação em comemoração ao seu primeiro ano de existência. Entre as várias autoridades presentes estava José Serra.

Ao me apresentar, contei ao governador que sou médico, que fiz graduação na USP, pesquisas em Harvard, residência em dermatologia no hospital Johns Hopkins (EUA) e especialização em cirurgia dermatológica em Paris. Contei também que há 5 dias fora contratado como médico concursado do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.


Ele sorriu e me deu parabéns. Ao agradecê-los, muito constrangido, informei-o de meu espanto ao descobrir que o salário-base para o médico do HC era de R$ 414 mensais para uma carga horária de 20 horas semanais.

O governador buscou me consolar dizendo que eu não ganharia só isso.

Respondi que estava ciente das gratificações e que, mesmo assim, meu salário bruto seria de R$ 1.500.
Informei-o ainda de que o custo para manter meu consultório fechado durante as horas em que estarei no HC é o triplo do valor que receberei do Estado.

Àquela altura, quando já não mais sorríamos, pedi sua opinião. O governador me aconselhou a deixar o HC, dizendo que o HC não é um bom negócio para mim.

íntegra: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1811200809.htm

Miguel do Rosário disse...

eu li esse conselho na folha. é estarrecedor.

João Villaverde disse...

The Darkmaster:
As vezes é preciso parar um pouco e pensar nesse último ponto levantado por você. Critica-se o(s) governo(s) por corrupção, corporativismo, conchavos, alienação, etc. Mas eles não são alienígenas. São pessoas pertencentes a sociedade brasileira. São o retrato perfeito de nossa sociedade. Corrupção, corporativismo e tudo o mais, acontece na política - federal, estadual e municipal - na entidade privada, em todos os campos.
Não chega a ser fenomenologia, mas objeto de estudo da antropologia. E não estou aqui desenhando um quadro pessimista de uma realidade essencialmente corrupta. É algo social e histórico, não ideológico.

Anônimo disse...

Miguel: e quem duvida que um orelhudo igual ao Serra não tenha dito isso com um risinho nos lábios?
E tem gente que acha o cara o máximo. É a elite paulistana! E o Serra sabe representá-la muito bem.

Ou seja, para o governador, o povão não precisa de um médico que fez sua residência em dermatologia no hospital Johns Hopkins (EUA)

Dr David Lacerda: na visão do José Serra o Sr tem que clinicar nos Jardins, Morumbi, AlphaVille e por aí afora. Como, em sã consciência, o Sr quer clinicar no Hosp das Clínicas, doutor?

Anônimo disse...

18/11/08 18:22

A REPÚBLICA DO GRAMPO


Por Francisco Walter - no Blog do Nassif

Caiu a farsa montada pelo Dep. Itagiba e pela imprensa, quanto a uma suposta "farra do grampo".

Segue link da notícia no CNJ:

Mais de 12 mil telefones são monitorados com autorização judicial

Atualmente estão sendo monitorados no Brasil 12.210 telefones, com autorização da Justiça. Esse é o resultado do balanço das interceptações telefônicas divulgado nesta terça-feira (18/11) pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp.

Segundo ele, "os números são infinitamente menores" do que as 400 mil interceptações divulgadas pela CPI dos Grampos.

"Desconhecemos a metodologia empregada pelas companhias telefônicas e, por isso, não podemos nos manifestar sobre a diferença entre os números", explicou o corregedor.

Anônimo disse...

CARAMBA! MAS PQ A REVISTA VEJA NÃO MOSTRA LOGO ESTA GRAVAÇÃO PÔ!!!

(Tá no Terra Magazine)

Para Amaury Portugal, presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia Federal do Estado de São Paulo, na atual situação do crime organizado no Brasil, sofre a PF, sofre o governo, mas os criminosos são liberados impunes pela Justiça. Ele critica a atuação do Judiciário na continuidade das ações feitas pela PF:

- A Justiça não os julga; são presos pela PF e depois liberados por causa de recursos, os tribunais atendem tudo o que eles pedem.

Houve abusos na operação Satiagraha?


Amaury Portugal: Esta é uma questão que está sendo revista através de um inquérito policial feito pela própria PF. Eu não vou me pronunciar sobre isto até que a própria instituição diga se houve ou não.

Por exemplo, a PF está investigando os grampos acusados pela revista Veja. Mas adianto que não foi encontrada a maior prova de que houve este grampo: a gravação.


FONTE: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3336152-EI6578,00-Crime+se+espalha+pelos+Poderes+critica+delegado.html

Anônimo disse...

Gostei muito do novo colaborador,parabéns.

José Carlos Lima disse...

bastante apropriada a imagem utilzada neste post.
os serviçais tem que viver com um salário minimo.
ou menos.
a imagem postada acima, os escravos servindo aos amos é atualíssima.
hoje pela manhã fui ao Forum (moro em Goiânia) resolver uma taxa de IPTU na dívida ativa.
o que me chamou a atenção foi a ausência de negros entre funcionários do forum.
mas eles estavam lá: limpando o chão, servindo café, tranzendo lanches, todos com um ar de submissão, bondade e obediência.
como na imagem acima

Anônimo disse...

Parabéns ao Dr. Davi de Lacerda pelo texto e pela coragem; ele merece todo nosso apoio!
Segui a evolução dos artigos na folha onde a réplica xula do governador, acompanhada da elegante tréplica do Dr. Davi, somente piorou a imagem do Serra. O Brasil todo precisa conhecer esse lado sombrio do Serra. Este evento revela sua incapacidade de perceber que é essencial pagar bem aos profissionais da sau'de. Quero ver quanto ele vai dar de aumento aos médicos do HC até 2010. Muito bom!

Postar um comentário