25 de novembro de 2008

A polêmica dos índios


Por João Villaverde

O Brasil é campeão em assuntos delicados levados da pior maneira possível pela imprensa, pela oposição (em alguns casos, são a mesma coisa), pelo governo, enfim. Somos pródigos. E não estou com aquele criticismo mesquinho de gente que tem nojo do país, como Arnaldo Jabor, Demétrio Magnolli, Dora Kramer, etc. Esse pessoal torce para as coisas irem mal, porque dessa forma eles tem assunto para encher o espaço que os jornais e tevês dão.

Vejamos. Temos o desenrolar da Satiagraha, das eleições municipais, as questões regionais e federais, as reuniões do G-20, a crise americana, Obama, etc. Todos os temas são tratados, grosso modo, da pior maneira possível. Falta estudo e falta um mínimo de reflexão. As coisas são recebidas de bate - pronto. E o resultado a gente vê todo dia.

Outra história que está recebendo um tratamento ridículo foi a "polêmica" criada em torno da declaração do José Gomes Temporão, ministro da Saúde, pedindo menos corrupção e mais trabalho da Funasa, a Fundação Nacional de Saúde. Foi isso.

Fizeram um carnaval. Colocaram a frase na boca do pessoal do PMDB, que logo veio pedir que o ministro voltasse atrás nas declarações. Ao mesmo tempo, o presidente da Funasa, Danilo Fortes – muito ligado a Renan Calheiros - , ousou defender que Temporão o demitisse. Alguns jornais chegaram a dizer que Lula demitiria Temporão e tudo o mais.

A Funasa é uma fundação errada que nasceu errada e tem tudo para dar errado. A idéia de tirar da Funai a assistência médica dos índios brasileiros foi um tiro no pé. Para tratar de povos indígenas, mais do que respeito, é preciso conhecer. É preciso saber tratar. É preciso saber o que pode dar certo e o que não pode. Para isso é preciso comprometimento. Não apenas dos profissionais que fazem o serviço (os médicos), mas do pessoal que solta o dinheiro e faz o treinamento. Toda a organização tem de saber trabalhar e ter comprometimento.

Não estou dizendo que a Funai tem. Teve no período em que o Mércio Gomes era o presidente, porque ele ainda conseguia contornar a enorme falta de verbas. Mas ainda assim, de uma maneira geral, o órgão de relacionamento com tribos indígenas é a Funai. Lá que estão - ou deveriam estar - os conhecedores, os antropólogos, os médicos, o pessoal de base, enfim, servidores públicos comprometidos com a missão de tratar com índios.

A criação da Funasa foi errada porque não nasceu do ideal de descentralizar a relação do Estado com os povos indígenas, criando diversas agências e fundações. Mesmo isso estaria errado. Por mais extensa que seja nossa nação indígena, os portugueses e a elite brasileira que se seguiu já fez boa parte do trabalho do "desenvolvimento econômico". Restam poucas tribos. Nesse sentido, centralizar as decisões numa Funai fortalecida parece ser o correto.

E a Funasa é uma fundação errada porque, além de mais esvaziada que a Funai, ela é quase que totalmente terceirizada para interesses partidários. É de um imobilismo atroz. Nem Godard seria capaz de filmar a lentidão da Funasa. Ele próprio ficaria entediado.

Aliás, passada a perseguição natural ao Temporão, as matérias mais recentes começam a analisar a questão como ela é, ao menos, falando de orçamento – a questão indígena ainda está fora do foco (como é de se esperar). Matéria da Folha de ontem chama a atenção para relatórios produzidos por órgãos de controle interno do governo sobre a atuação de suas autarquias.

A Funasa controla um terço dos investimentos de todo o Ministério da Saúde. Isso equivale a R$ 4,5 bilhões. Isso mesmo, quatro e meio bilhões de reais – mais que vários ministérios. A mais recente investigação do TCU (Tribunal de Contas da União) encontrou irregularidades em todos os 65 convênios auditados. Balanço feito pela CGU (Controladoria Geral da União) contabilizou prejuízo de R$ 33,8 milhões nos mais graves casos de superfaturamento e demais irregularidades identificados nos últimos três anos

Agora, mesmo seguindo a linha de raciocínio estabelecida pelos órgãos de imprensa e pelo pessoal do PMDB, não foi o fim da Funasa o que Temporão defendeu. Temporão defendeu o fim da corrupção no órgão e cobrou maior comprometimento dos servidores da Fundação.

Foi uma declaração radical peró no mucho. Mas nossos conservadores já acharam demais. E como o ministro já não goza de boa simpatia da imprensa e dos políticos - ele nem é tão ligado ao PMDB assim - iniciou-se o carnaval ridículo de forçar sua saída.

O debate sobre a Funasa está tão na praça que na terça-feira passada, índios de aldeias do Parque do Xingu (MT) ocuparam a sede da Funasa em Canarana (525 km de Cuiabá) e fizeram 12 funcionários reféns. Alguém ficou sabendo disso?

E se ficou, sabem quais são as reivindicações? 1) A permanência da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) no atendimento médico dos indígenas e 2) a criação de uma secretária no Ministério da Saúde para questões indígenas, proposta em projeto de lei do ministro José Gomes Temporão.

É consenso entre os indígenas - que são os maiores interessados nessa questão toda - que a Funasa não funciona. Ao menos não nos termos em que a situação está posta. E a opinião deles, como há 508 anos, é solenemente ignorada.

Mesmo que os formadores de opinião levassem em conta esse protesto e as reivindicações, diriam que as afirmações de Temporão sobre a Funasa eram "populistas", por irem de encontro com a demanda dos indígenas.

Aliás, os anos 2000 serão marcados no futuro pelas ciências sociais pela divisão entre “populistas” e os “gerentes”. Toda e qualquer ação de política social é logo taxada de “populismo”, como se isso fosse um palavrão tremendo. Bom mesmo é contingenciar verbas, cortando gastos e investimentos. Aí sim se ganha o tão desejado adesivo de “gerente”. Todo esse vocabulário reducionista já foi plenamente incorporado pelos nativos e é exportado para as análises feitas de políticas em vizinhos da América Latina. Por exemplo: Morales é “populista”, mas Uribe é “gerente”.

Sobre as grandes questões nacionais – a questão da assistência aos índios é apenas uma delas - o discurso da imprensa e dos negativistas golpistas que ambicionam a vida em um país de primeiro mundo já está colocado. Os fatos que se danem.

2 comentarios

carlos disse...

muito prazer, sr josé villaverde,

os jornalões embaralharam, até dizer chega, as declarações do temporão, pois são mestres nisso.

o articulista acertou na mosca. parabéns pelo artigo.

ps: populismo versus gestão foi um achado!

Anônimo disse...

Só uma dica, o blog do antropólogo Mércio Gomes é o melhor lugar para acompanhar a questão indígena:



http://merciogomes.blogspot.com/



Abraço!

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