Publicado originalmente no
Portal Literal, em 16/07/2007.
Não tem flagrante, porque a fumaça já subiu pra cuca. Uso os versos imortalizados por Bezerra da Silva* para lembrar que Márcia Denser está na área.
A escritora paulistana, com trinta anos de carreira e uma das melhores fortunas críticas do país (era a preferida de Paulo Francis) – o que equivale a não fazer nenhum ponto na loteria esportiva! –, vem aproveitando sua coluna no Congresso em Foco para mostrar sua insatisfação contra o conservadorismo e o marasmo que, segundo ela, tomaram conta da vida intelectual brasileira nos últimos anos. Não há flagrante porque a sintática de Denser é brilhante, psicodélica, terrível e, ao mesmo tempo, delicada e triste. Não é aí que a polícia do pensamento conservador encontrará algum ilícito. Está tudo na mente, na história, ou, como prefere Denser, no corpo da linguagem. Nas histórias de devassidão, amores traídos, bebedeiras, estranhos jogos de sedução, desesperadas reflexões existenciais, construção e desconstrução de personagens – aí mora o crime. Aí encontrar-se-á aquela fundamental subversão, raiz de todo humanismo verdadeiro, que é sempre rebelde e fora-da-lei, visto que sua ética e justiça não podem ser aprisionadas em nenhuma carta constitucional.
Nunca recebeu prêmios, mas – ainda citando Bezerra – é na frente do homem que bate o martelo que veremos quem é que errou. É o julgamento final da História que irá assegurar o justo lugar da autora de obras-primas como o conto "O quinto elemento" e "O vampiro da alameda Casa Branca".
A literatura de Denser é daquelas que, mais do que serem lidas, merecem ser assimiladas no sangue, como anfetamina. O coquetel de erudição, feroz análise psicológica e delirante descrição de cenários e situações te deixa realmente bêbado. Maravilhosamente bêbado de literatura. Com a vantagem de não atacar o fígado e não dar ressaca no dia seguinte – embora, como os livros de Henry Miller ou uma chamada telefônica num sábado à noite, a literatura de Denser nos empurre, inexoravelmente, para a vida e seus drinks - reais ou afetivos.
Pode nos contar como foi a sua formação cultural? Os livros que te marcaram na infância. Você lia muito quando criança? Seus pais ou o colégio contribuíram para seu interesse por literatura?
Márcia Denser. Minha formação foi essencialmente humanista: eu gostava de História e Mitologia (e isso não é um paradoxo, porque ambas se completam). Acho que essa pode ser uma boa base para um ficcionista, acrescentando-se a biblioteca do meu avô – cheia de romances e ficção. Na época, éramos umas trinta crianças, entre primos e primas, que passavam retas pela biblioteca sem se deter, salvo eu. Que dia a dia subia um lance de escada rumo às prateleiras mais altas. Lembro que na festa de meus nove anos, larguei meus amigos, primos, presentes, brincadeiras, larguei tudo e me enfiei no quarto para ler Monteiro Lobato, cujos três primeiros livros, Reinações de Narizinho, Viagem ao céu e O Saci, meu pai havia me dado. Dei as costas para o mundo porque outro universo se abriu. Então, a priori, nós, escritores, somos leitores, a nossa vocação é a leitura, aliás compulsiva. De Proust à bula de remédio, sem contar os filmes de Hollywood.
Você já parou para pensar até que ponto São Paulo influenciou a sua forma de escrever?
Denser. Sou escritora e a cidade é meu campo de ação, meu altar de sacrifícios, minha entidade mais secreta. E também a mais pública. Desde tempos imemoriais, a cidade é um símbolo feminino, é mulher, então compreende-se porque as estátuas de deusas-mãe, como a Diana de Éfeso, ostentam coroas em formas de muros. Assim, minha personagem Diana Marini é uma representação de São Paulo. Na novela Welcome to Diana ela dá boas vindas ao leitor (em inglês, posto ser cosmopolita), seu lema é seduzi-lo – para melhor devorá-lo! Meu último romance Caim é uma história de São Paulo, é a saga de uma família diaspórica e a crônica de uma cicatriz.
No conto "O quinto elemento", você faz uma extravagante e poética análise de sua própria personagem Diana Marini. Segundo suas próprias palavras, é um processo de desconstrução da Diana. A Diana morreu? Ou como dizia Guimarães Rosa, encantou-se? Onde o momento histórico do país e o seu momento existencial se confundem com essa "desconstrução"?
Denser. No "Quinto elemento" conto a história secreta da minha personagem pública, Diana Marini que, no plano pessoal, extrapolou e me invadiu, provocando uma crise de identidade, aliás uma crise em todos os setores da minha vida e, paradoxalmente, pelo sofrimento, me fez amadurecer, como escritora e como ser humano. Porque Diana Marini é um arquétipo, e arquétipos não pagam aluguel! Por outro lado, DM também não morre, arquétipos são imortais, cara, o destino trágico e o desencadear das Fúrias cabe ao ser humano, sempre que este se identifica com arquétipos, os deuses.
O momento foi o início dos anos 90, com o colapso da literatura brasileira (bem como do cinema, da música, do teatro,etc.), quer dizer, com o colapso de toda a cultura brasileira, que até então cultivava o próprio imaginário e tinha orgulho de si, mediante o ataque da globalização e a imposição de seus parâmetros aos quais – só hoje eu sei – não era necessário render-se, não tão completamente, tal como ocorre hoje no âmbito cultural. Se você abre mão das suas raízes culturais, estará condenado à irrelevância em toda parte e para sempre! É o que a burguesia rica brasileira está fazendo – detonando culturalmente o país – sempre a serviço do patrão ianque/europeu, a quem nossos dirigentes de fato servem como sócios menores. Mas não adianta dizer isso, estou gastando meu latim, as pessoas sabem disso, sabem e não se importam, isto é que é terrível!
Denser, qual a importância da literatura no Brasil? Mais especificamente, qual a função social da literatura no Brasil?
Denser. Se a literatura é a empresa de conquista verbal da realidade, como definia Cortázar, no Brasil a importância dela então é imensa, neste país do alheio e do alienado, a função da literatura é acender a luz, conscientizar as pessoas da nossa realidade aqui e agora, para que esta conquista – da literatura e da realidade – se consume. Veja que então nossa tarefa é dupla, nada fácil. O francês, o norte-americano, o inglês, incluindo o mexicano, o argentino, o venezuelano, sentem-se donos de seu território, com direito às suas tradições culturais, das quais se orgulham, como parte inclusive do próprio patrimônio individual! Nenhum artista existe como tabula rasa, ele precisa se ligar a algo que veio antes, a começar da própria língua, etc. Este desmanche cultural a pretexto de globalizar-se a longo prazo é suicídio!
Falando sobre crítica literária, você acha que, diante da grande liberdade que a arte respira hoje (depois de Duchamp, Joyce, Faulkner, Godard), esta crise da "crítica", ou seja, da falta de "critérios" seria o preço a pagar? Ou seria falta de coragem para apontar defeitos ou qualidades? Ou seria realmente que a arte, no caso a literatura, foi mais rápida que a crítica, que ficou para trás, confusa e infantil?
Denser. Olha, crítica e criação são uma só e mesma coisa. Porque a literatura só avança, se desenvolve, amadurece, quando as obras são lidas, relidas, criticadas, discutidas até à exaustão! Os textos precisam ser polemizados, colocados na berlinda, o diabo. O que não pode de forma alguma é prevalecer o presente estado de coisas (agora me desculpe, mas vou citar a mim mesma): Será que a crítica da cultura e da literatura agora se resume a este exercício de insinceridade estética que se traduz pelo tipo de resenhas/matérias/critérios de premiação/badalação praticado oralmente e por escrito, na internet, na imprensa, em sociedade, enfim, na vida? É importante captar a pulsação do "espírito de época" (ou da "falta de espírito de época") porque essa "insinceridade cultural" praticada a torto e a direito, de efeitos catastróficos a longo prazo, é produto da Censura Econômica a que se sujeitou o ser humano que, ou se acanalha ou morre de fome, mandando para o diabo toda a literatura e a liberdade para escrevê-la!
Que lições tem tirado de sua experiência como colunista política no Congresso em Foco?
Denser. As melhores possíveis, porque se eu escrevesse na outra mídia – toda ela – não poderia dizer o que penso, teria que mentir ou me omitir. Seria um grande problema. Uma coluna on-line me garante liberdade de expressão! Mas pior que o pensamento único dominante é a própria ausência de pensamento que contamina os contemporâneos e suscita a generalização da cretinice e do oportunismo político enquanto embota a percepção, donde a falência da elite intelectual, que parece ter desistido ao mesmo tempo do Brasil e da reflexão sobre o processo histórico em curso. Segundo Paulo Arantes, o que acontece é a "extinção da inteligência dos inteligentes" no mesmo instante em que ocorre a formação de um "bloco histórico da crueldade social", que envolve a grande mídia na atmosfera envenenada e obscura duma Censura (e auto-censura) Onipresente, infinitamente pior que a Censura praticada durante a ditadura que, comparada à atual, não passava de brincadeira de amadores.
Aproveitando o gancho político, o que pensa do governo Lula? Na sua opinião, qual a razão da mídia (digo, os jornalões) estar assumindo uma linha editorial cada vez mais oposicionista?
Denser. Acho que aquela minha coluna Mídia Perversa & Burra esgota a questão da mídia. Quanto ao Lula, na medida do possível, ele está fazendo um bom governo, bem intencionado, etc., mas acho que ele não devia mais fazer tantas concessões à direita, mesmo porque a mídia tem deixado claro que não só jamais será sua aliada, (posto que controlada pela elite perversa e burra), como desde que se elegeu presidente, não deixou um só dia de trabalhar para derrubá-lo do poder.
Aliás, essa elite só tem um inimigo: o povo brasileiro. Assim como nos Estados Unidos, o inimigo não são os iraquianos/afegãos/cubanos/etc., porque a guerra não é contra o Iraque/Afeganistão/Cuba, etc. mas contra o povo norte-americano. No mundo inteiro trata-se de promover a guerra contra os civis!
Li uma entrevista sua, por ocasião de lançamento de seu último romance, em que você, citando Faulkner, se não me engano, diz algo como: todas as histórias já foram contadas, ou seja, o que importa hoje, na literatura, é a maneira como a história é escrita. Entretanto, em suas histórias, assim como nas de Faulkner, temos histórias incríveis, originais, delicados e terríveis dramas psicológicos, embora naturalmente intrínsecas à "forma" como são contadas, só poderiam ganhar vida através das ferramentas sintáticas usadas. Na realidade, então, a forma da narrativa ainda não estaria, dialeticamente, presa ao conteúdo? A diferença não seria que, no romance contemporâneo, a forma acaba, muitas vezes, se tornando mais um personagem?
Denser. O romance enquanto obra maior da linguagem, tal como o conhecemos, é invenção relativamente recente, por incrível que pareça. Do final do século XIX e início do XX, a partir de Proust e Joyce. Proust desenvolveu ao máximo aquilo que conhecemos como "fluxo de consciência", levando ao infinito as possibilidades do "romance psicológico" praticado pelos franceses, de Stendhal a Flaubert. Quanto à Joyce, veja-se a re-proposição mítica da estória – pessoal – e da história – social, tudo num só dia em Dublin, sem contar o reinventar das palavras em "palavras-valise". Quer dizer, passa a existir a chamada "prosa de raiz poética" – de invenção aparentemente inesgotável. Porque de Homero ao século XIX o que existia era o "romance vertical" – no caso da poesia épica – e o novelão, os mitos e o mar de histórias. Literatura ponto, não literatura como arte. Que fique bem claro: escritor não é contador de histórias porra nenhuma!!!!!!!!!!!!! Ao escrever um texto, a última coisa que me preocupa é a história, o plot, o enredo, a trama, cara. Tudo o que me preocupa, só o que me preocupa é a linguagem, e então sim, encontrada esta voz, e nenhuma outra, poderei dizer o que eu quiser, porque forma e conteúdo serão indissociáveis, serão uma só e a mesma coisa, percebe?
MÁRCIA DENSER Bio-biblio
Paulistana da capital, nascida a 23/05, cinqüenta anos, graduação em Programação Visual/Comunicações e Artes no Mackenzie, 1975, e pós-graduação em Letras e Comunicação pela PUCSP, 2003. Publicados nove livros solo: Tango fantasma (contos, 1976-2003), Exercícios para o pecado (novelas, 1984), O animal dos motéis (contos, 1981), Diana caçadora (contos, 1986-2003), A ponte das estrelas (aventuras, 1990), Toda prosa (inéditos e dispersos, 2002), Diana caçadora/Tango fantasma (reedição, 2003, Ateliê Editorial), Caim (romance, 2006, Record) e a sair em outubro Toda prosa II - Obra escolhida (Record, contos e novelas). Participação em dezenas de antologias no Brasil e exterior. Obras traduzidas e publicadas na Alemanha, Bulgária, Suíça, Estados Unidos, Holanda, Espanha, a sair na Hungria e Argentina. Curiosidades: o conto "O vampiro da alameda Casa Branca" (em primeiro lugar nos anos 80 entre os Cem melhores contos brasileiros do século, org. Ítalo Moriconi, Objetiva) já foi traduzido em três idiomas: inglês, holandês, alemão.
* Versos da canção "A fumaça já subiu para a cabeça", de Bezerra da Silva.