Hoje fui à Biblioteca Nacional, na Avenida Rio Branco, pesquisar edições antigas do jornal O Globo. Fiquei algum tempo lendo as edições do ano de 1954. Impressionaram-me duas coisas. A primeira foi a manipulação das notícias referentes ao golpe militar na Guatemala, ocorrido naquele ano. Para um leitor do Globo, o governo democrativamente eleito de José Arbenz queria implantar uma ditadura comunista. Não era nada disso. O que ocorria é que, naqueles tempos fanáticos, qualquer governante com a mais leve veleidade "esquerdista", como querer fazer uma reforma agrária, era acusado de flertar com o totalitarismo. Enfim, os militares derrubaram Arbenz e, eles sim, cancelaram eleições e implantaram um regime ditatorial. Para os leitores do Globo de 1954, eram chefes revolucionários que haviam tolhido a marcha do comunismo na América Latina. As primeiras declarações do novo governo guatemalteco não deixa dúvida sobre suas preocupações "sociais": quer eliminar o comunismo no país. Como ficamos sabemos dez anos depois, isso implicava em proibir livros como "O vermelho e o negro", de Stendhal, por causa da terrível palavra "vermelho".
Também foi curioso ler um trecho de editorial do New York Times, pedindo que o governo americano não intervisse no "novo governo", e criticando totalitarismos "à esquerda" e "à direita", sem distinguir um governo democrático legítimo e outro fruto de um putch militar notoriamente bancado pelos EUA. O New York Times sempre foi hipócrita. Cala-se diante das artimanhas dos governos americanos e depois pinta-se de bonzinho e crítico, para ficar bem na foto da chamada "imprensa democrática". A única coisa digna a fazer naquele momento era condenar peremptoriamente qualquer tentativa de tomar o poder que não fosse pelo processo democrático.
Outra coisa que me impressionou foi a campanha do Globo e senadores da direita contra o novo salário mínimo. Aprovado pelo Congresso Nacional, o novo salário mínimo despertou uma onda de ódio no empresariado nacional. Parlamentares da UDN (o DEM da época) entraram com uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra o novo salário mínimo. Um deputado, em reunião com a Associação das Donas de Casa, assegurou às nobres senhoras que as empregadas domésticas estavam, logicamente, fora da lei do salário mínimo - visto que tinham "comida" e "moradia" na casa dos patrões. Pois é. Os escravos também tinham. Juro que li isso.
A votação no Supremo produziu grande expectativa no país. De um lado, os enormes sindicatos de trabalhadores, que serão destruídos pela ditadura dez anos depois, de outro, uma minoria de parlamentares da direita e a mídia. O interessante é observar que os partidos de direita viviam uma tremenda crise interna, em função da popularidade de Vargas. Tinham apoio de grandes empresários e da mídia, mas perdiam votos e não elegiam maiorias nos parlamentos. Por isso, apelavam para o Supremo. Qualquer semelhança com o presente não é mera coincidência.
Enfim, o Supremo declara que o novo salário mínimo é absolutamente constitucional. Os sindicatos comemoram eufóricos, inclusive publicando anúncios no Globo.
Um terceiro fato interessante é notar que, hoje, sabemos que, naquele mandato de 1950 a 1954, Vargas fez grandes realizações, como a criação da Eletrobrás, da Eletrobrás, além da consolidação da legislação trabalhista. Enfim, várias medidas que continuavam o que Vargas já tinha iniciado durante o Estado Novo. Pelo Globo, porém, pouco se sabe. Ele - O Globo - se limitava a fazer campanha contra qualquer medida em prol do trabalhador brasileiro. Fazia-se um terrorismo chulo e mau caráter, martelando a idéia fixa de que o aumento dos salários produziria demissões em massa. Ninguém ponderava que a melhora do poder aquisitivo da população economicamente ativa injetaria dinheiro no mercado doméstico, num ciclo positivo que seria benéfico para empresas e trabalhadores.
Eu queria escrever um romance mais ou menos no estilo do Complô contra a América, do Philip Roth. Nesse romance, Vargas não se suicidaria. Seria deposto pelos militares. O golpe militar, portanto, teria início dez anos antes, em 1954. Tive vontade de escrever uma ficção sobre o segundo mandato de Vargas porque lembrei de Rubem Fonseca e seu Agosto. O livro virou seriado na Globo e foi a grande alavanca de vendas para as obras de Fonseca. Entretanto, as tensões da época, as paixões políticas, os sindicatos poderosos, o comunismo duro, os udenistas, a classe média moralista, a atmosfera de guerra fria, possuem elementos extraordinários para uma ficção - e não foram satisfatoriamente,ao menos para mim, captadas pela imaginação de Fonseca.
Voltarei à biblioteca e continuarei pensando no romance. Para ser interessante, não posso me limitar à política, naturalmente. A época tem outras características facinantes. A Hungria era a seleção favorita da Copa do Mundo de 1954 e Olaria era um dos principais times do Rio de Janeiro.
27 de fevereiro de 2008
Anotações para um romance, parte 1
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Deve dar um romance sensacional. Seria bom "fulanizar" um pouco os assuntos, os embates. Não foi também a época do café soçaite? Do crime do Sacopã? Se foi, há umas matérias do Aguinaldo Silva (antes de ser globalizado...)no Opinião bastante interessantes.
Júlio César Montenegro- ex-editor de cultura do finado Opinião,
ex-sócio do fracassado Beijo (sairam apenas 6 números...)
jcmontenegro@globo.com
Miguel, essa pesquisa é fascinante, a gente precisa ter um jeito de digitalizar esses materiais e mostrar que desde muito tempo atrás a manipulação midiática imperava, e com muito menos condição da gente contestar, como podemos agora.
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