Eu tinha prometido a mim mesmo e a meus leitores que iria suspender por um tempo o personagem do blogueiro maluco que eu vinha cultivando meio que sem querer. Mantenho a promessa. O momento é grave no Brasil, com eleições que se mostram decisivas para nossa história e destino, e no mundo, onde os tambores de guerra voltaram a ruflar, para satisfação dos bilionários que prestam serviços ao Pentágono.
Mas tenho recaídas. Ontem, por exemplo. Cheguei em casa zuretado de cerveja depois de uma noite cheia de derrotas. O Flamengo não se classificou na Libertadores. Depois eu errei a senha do cartão do banco e ela foi bloqueada. Tive que pendurar a conta na boa vontade de um camarada. Até aí tudo bem. Não contava com a vitória do Flamengo mesmo, e economizei uma boa grana com a suspensão da senha (meu amigo foi embora logo, e eu também).
Em casa, liguei o computador e deparei-me com um Direct Message hostil, ou que assim me pareceu, de uma pessoa que eu gosto. No estado emocional em que eu me encontrava, agravado por uma solidão que já está me exasperando (minha mulher está em São Paulo), aquilo me entristeceu e depois me enfureceu. Achei uma injustiça ser tratado com tanta desconsideração. Mas estava com muito sono, então postei uma mensagem mal criada no blog e desmaiei.
Acordei oito horas depois com meu celular tocando. Era minha mãe, nervosíssima, perguntando o que havia acontecido. Aí eu me lembrei. O post não fora exatamente mal criado; era dramático e exagerado, intitulado "Blogueiro ferido", e mencionava ofensas e humilhação. Corri para o computador e apaguei o post. Tentei me explicar com a pessoa em questão, que deve ter ficado estupefata com a reação desproporcional a um bilhetinho sem nenhuma intenção bélica ou maligna.
O estrago estava feito. Alguns leitores, ainda inocentes para esse meu lado teatral, enviaram-me longas cartas de apoio.
E agora, Miguel, prestaste um papel ridículo mais uma vez? O que você é: uma avatar bêbado e duro do Gerald Thomas? Era a pergunta que eu fazia a mim mesmo. Então saí para almoçar num restaurante de 3,99 a refeição livre, aqui perto. Dividi a mesa com um senhor cujo prato tinha quatro ou cinco andares de comida, e que, diante da minha modesta refeição, perguntou-me:
- Você janta?
E apontou para meu prato e para o seu, explicando que devorava aquela quantidade de dia porque de noite não tinha o hábito de jantar. Eu contei-lhe que, de fato, jantara um prato de macarrão ao chegar em casa ontem à noite, depois das cervejas de consolação pela derrota rubronegra. Disse-lhe também que estava engordando muito rápido e precisava maneirar na comida.
Mas isso não tem nada a ver com a questão. Eu estava refletindo em como sair da enrascada moral em que me enfiara. Recordei-me de uma outra conversa, de várias conversas, sobre o enervante jogo de vaidades nas cúpulas universitárias. Doutores e professores travam guerrinhas psicológicas constantes, muitas vezes puramente infantis, em torno de futilidades. Isso acontece em toda parte.
Então descobri a saída. Ao fim do túnel, vislumbrei uma luzinha e agora mesmo caminho em direção à ela.
Pensei em duas grandes coisas: Dostoiésvki e a guerra do Irã.
Falemos primeiramente do Irã.
O que os EUA estão fazendo com o Irã é justamente isso. Uma guerra de nervos. Procuram desequilibrar emocionalmente as autoridades iranianas, com palavras duras que as atacam moralmente. O que o porta-voz da Casa Branca, a secretária de Estado, colunistas de mídia, falam de Ahmadinejad e do regime iraniano não são palavras ao vento. Essas palavras repercutem. Ferem. Humilham. Muitas vezes, a maneira como são ditas, a maneira desrespeitosa, ofensiva, arrogante, cala mais fundo em setores da sociedade persa do que eventuais sanções econômicas.
O homem é um ser emocional. Essa é a grande sacação do Lula. Você consegue reduzir a tensão política apenas conversando e tratando o outro com respeito. Com afeto mesmo. Essa é verdadeira mensagem cristã. Amar também seus inimigos.
Ontem eu li uma crônica do Zuenir Ventura que me deixou chateado. Ele diz que Lula se encontrou com o "monstro Ahmadinejad", enquanto deveria visitar presos políticos do país. Respeito muito o Zuenir, mas o que ele disse é de uma estupidez atroz. Primeiramente, ao se referir a Ahmadinejad como monstro, ele ajuda o lobby da guerra, que fez a mesmíssima coisa com Saddam Hussein. Monstro porquê? Os EUA mataram 1 milhão de iraquianos, e deixaram outros 10 milhões passando fome e tremendo de pavor e o Ahmadinejad é que é o monstro? A segunda sugestão equivale a pedir que Lula, antes de encontrar-se com Obama, dê uma passada em Guantánamo para trocar idéias com os internos. As palavras de Zuenir caem bem nos coquetéis que ele frequenta no Leblon, rodeado de assinantes do Globo, e por isso mesmo são pérolas de preconceito e tolice.
As pessoas começam a odiar o Irã e o Ahmadinejad sem saber bem o porque. Ah, ele negou o Holocausto. Já li inúmeros depoimentos sobre isso, inclusive do próprio Lula, que disse ter conversado pessoalmente com ele sobre essa questão. Ahmadinejad explicou ao Lula que não negava o Holocausto e sim que explicitava ao mundo que a II Guerra matara mais de 50 milhões de pessoas. Mesmo morrendo 6 milhões de judeus, havia quase 40 milhões não judeus que pereceram no conflito e ninguém fala deles. Lula contou que disse a ele algo como: "então explica isso, cacildes! Não vê que estão espalhando por aí que você nega o Holocausto?"
É uma discussão idiota, eu sei. Mas eu fico pensando o seguinte: as pessoas parecem esquecer uma coisa fundamental. Que foram os europeus, tão bonzinhos e humanistas, que mataram os seis milhões de judeus e as 50 milhões de pessoas. Não foram os iranianos. É muito estranho jogar toda carga negativa por trás do Holocausto pra cima do Ahmadinejad.
Hoje a Folha publica um artigo de um sujeitinho conhecido lá de Miami, o tal do Andres Oppenheimer, que fala a um público de ultradireita do sul racista americano e tem um histórico de barbaridades e mentiras escritas sobre o Brasil. O texto de hoje é simplesmente sórdido. Ele tenta humilhar o Brasil. Diz que Lula devia se concentrar em resolver o conflito entre Argentina e Uruguai em torno de uma fábrica de celulose... e outras grosserias que prefiro nem mencionar.
A outra coisa que pensei foi em Dostoiévski. Existe uma certa polêmica em torno da "ideologia" do maior escritor de todos os tempos. A esquerda russa, por muitos anos, taxou-o de "reacionário" por se ausentar dos grandes debates políticos nacionais, ou por outra razão qualquer. O velho Dósti nunca deu muita bola para isso. Ele era escaldado, enfim. Quando jovem participava de reuniões políticas de filhinhos-de-papai rebeldes, e havia sido o único preso (porque era o único pobre) por causa disso. Passou quatro anos fechado num presídio junto com bandidos comuns, depois mais sete anos exilado na Sibéria. Se havia alguém com motivos para não se envolver em política, era Fiodor Dostoievski.
Um dia, porém, um editor da maior revista de esquerda russa bateu à porta do velho escritor, pedindo-lhe desculpas pelos malentendidos dos últimos anos e solicitando um artigo. Consta que Dosti o recebeu muito bem, e não lembro se escreveu o artigo requerido.
Lembrei-me do velho Dosti (Henry Miller o chamava assim) porque suas histórias me ocorrem sempre que me encontro em dificuldades. Os temais centrais da sua literatura são a humilhação, o desespero, a bondade, a inocência, a vaidade, a violência. Foi o primeiro escritor a desnudar o lado patético do homem. Seus personagens oscilam do mais dionisíaco entusiasmo ao mais sombrio desespero. Lembrei-me dele porque vi que essa também era a minha salvação. Somos ridículos, sim, mas somos grandes. Humilhamo-nos por nossa própria incompetência, covardia e loucura, mas somos capazes de inacreditáveis atos de heroísmo e generosidade. Por isso mesmo eu li toda a obra de Dostoiésvki. Alguns mais de uma vez. Os Irmãos Karamazóv, três vezes. Os Demônios, duas. Porque eu me identifiquei com Dostoiésvki, com essa consciência de quão ridículos e frágeis nós somos; e ao mesmo tempo tocados por uma graça divina da qual nunca nos damos conta.
Afinal, mesmo os gestos mais patéticos, mais insignificantes e ridículos, tem um significado grandioso. Ás vezes esses são os mais importantes de todos. Podemos passar a vida tecendo conceitos de elevado valor moral, escrevendo textos que exercem influência na geopolítica universal, mas talvez seja um gesto de desprezo lançado à empregada, ao filho, a um amigo, o que pode lançar nossa alma definitivamente no inferno. Isso vale para pessoas, para chefes de Estado e para países. Guerras talvez pudessem ser evitadas se o lado emocional, o aspecto humano, fossem respeitados nas articulações políticas. Mas talvez não haja interesse em evitar a guerra... Talvez esses pequenos gestos traduzam sentimentos enormemente ruins. Ou não, né? Essa foi aliás a maior contribuição do Brasil à filosofia, a frase de Caetano. Ou não.
PS: Agora deixa eu entrar no mundo; acho que a porta já se abriu.
21 de maio de 2010
Patetices de um rubronegro triste
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Então, só pra relaxar, Miguel, veja a gozação que publiquei lá "em casa". Um pouco de humor numa hora dessas, tremenda sexta-feira, até que vai bem, certo? Abs. Nivia
http://cachacaaraci.wordpress.com/2010/05/21/o-passado-condena-o-presente-desabona-o-futuro%C2%A0inquieta%E2%80%A6/
O que faz a cachaça, né Miguel?
O pior é a ressaca moral no dia seguinte, sei bem, sou versado nesse assunto.
Também fiquei preocupado com seu post irritado...
Quando ao Lula, o midia tupiniquim sempre foi partido de oposição, já nem ligo mais.
Pena que o PT demore tanto pra reagir...
Agora a Hilária tá torcendo pras Coréias brigarem, quem sabe os patrões dela, fabricantes de armas, consigam faturar alguma coisa e pingue algum no cofrinho dela. Mulher mal amada só sabe pensar em grana...
kkkkkkkkkkk
e pensar que esse maluco é meu blogueiro favorito....
Pensei que tu tinha apanhado de pau, Miguel!
Bobagem, Miguel, a vida é um céu inacabado! amanhã é um outro dia...
Ora seremos adoradores dos Deuses, ora dos demônios, se seguirmos o pensamento da maioria e não considerarmos a nossa própria reflexão do que é justo.
Esse Andress sei lá das quantas....sic
que coisa lamentável não?
Realmente a direita perdeu o rumo.
Miguel,
se você não existisse teria que ser inventado.
Assino muitas revistas e jornais, mas sua carta diária é a minha preferida.
Hoje de manhã achei que você tinha apanhado na rua. Pensei até no pessoal ultra-direitista do Leblon que uma vez arrancou um dedo de uma mulher numa briga política. :D
Miguel, ontem também tive uma recaída e enchi a cara. Explico: É que depois da dengue que peguei meu fígado não tem andado lá muito regular e qualquer golinho já me indispõe. Não deu outra, tive que voltar mais cedo pra casa. O negócio é dormir.
Gostaria de chamar a atenção para um detalhe no post, que não é essencial mas penso que relevante. Vinte milhões de russos morreram na segunda guerra. Tanto pela fome e pelas estratégias de Stalin quanto pelo chumbo alemão. Ao todo foram mais de cinquenta milhões de mortes.
Um abraço!
Sei lá o que dizer. Digo; Como é bom acessar este blog. ~sinto uma sintonia vibratória aqui. Obrigado por existirem todos voces.
Como é bom acessar este blog. Sinto-me sintonizado. Aqui há uma boa vibração. Agradeço ao blogueiro e a todos voces. Sentimento e razão em equilibrio.
vale josa, já corrigi. confundi com a morte de russos, isso mesmo. abraço
Menino,leio você diariamente e quase nunca comento,mas hoje me surpreendi com a sincorinicdade.Vivi algo muito parecido,em menor nível porque não tenho blog,mas também exagerei com um grande amigo e ex-amor,no calor da emoção que essa guerra interna e a externa,do Irã,nos provoca.Enfim,vou copiar seu texto e enviar para meu amigo,e outros tantos que possa ter ferido,contaminada por essa guerra insana,dentro e fora de mim!
obrigada pela sua honestidade e paixão!
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